Marcelo Rocha e Matheus Teixeira
Brasília, DF
As chamadas investigações preliminares se consolidaram em 2021 como o álibi para o procurador-geral da República, Augusto Aras, dizer que é diligente na apuração de suspeitas de irregularidades atribuídas ao presidente Jair Bolsonaro (PL) e a seu entorno.
De janeiro a novembro deste ano, a Procuradoria-Geral da República contabilizou 412 representações criminais que passaram a ser investigadas internamente no órgão. É mais de um caso por dia. O chefe do Executivo, por exemplo, foi alvo de 25 procedimentos desta natureza.
Nas últimas semanas, no entanto, ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) elevaram o tom das críticas por falta de supervisão do tribunal nesses expedientes e fecharam o cerco ao procurador-geral.
A tendência é que em 2022 os magistrados estejam ainda mais vigilantes. Procurada pela Folha, a PGR informou que não se manifestaria sobre o assunto —em agosto, após nova indicação de Bolsonaro, o Senado aprovou a recondução de Aras a mais dois anos de mandato.
A “notícia de fato”, nome dado a esses processos, é uma apuração preliminar relativa a variadas situações levadas ao conhecimento da Procuradoria.
Em diversas oportunidades, Aras lançou mão desse procedimento para afirmar ao Supremo que não é omisso e que já está apurando supostas ilegalidades de integrantes do governo federal.
Em outubro, porém, a ministra Cármen Lúcia deu início a um movimento para limitar os poderes da PGR nessas investigações.
A magistrada afirmou que nenhuma autoridade está “fora de qualquer supervisão ou controle” e mandou Aras detalhar ao STF quais medidas seriam tomadas em relação aos pedidos de investigação contra Bolsonaro devido às falas golpistas no 7 de Setembro.
Dois meses depois, no começo de dezembro, foi a vez de o ministro Alexandre de Moraes adotar medida similar.
Ele determinou o trancamento de uma apuração preliminar instaurada pela PGR para verificar possível crime do chefe do Executivo por ter feito uma falsa associação entre a Covid-19 e o risco de contrair o vírus da Aids.
Além disso, abriu um inquérito sobre o caso a pedido da CPI da Covid, o que é inusual, e deu 24 horas para o PGR enviar ao Supremo todos os dados que já havia levantado na apuração interna.
Antes disso, Aras já havia informado ao Supremo a abertura de apuração preliminar para averiguar a conduta, entre outros próceres do bolsonarismo, de dois filhos do presidente, do ministro Augusto Heleno (GSI) e da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). Nenhum dos casos havia evoluído ou tido maiores consequências.
Geralmente, nas manifestações enviadas ao STF no âmbito de pedidos para que membros do Executivo sejam investigados, Aras apenas afirma que abriu apurações internas e que, se constatada a prática de algum crime e a existência de lastro probatório mínimo, pedirá abertura de inquérito policial.
No caso de Bolsonaro, por exemplo, foram abertos 25 procedimentos desta natureza em 2021, mas houve, no mesmo período, apenas uma única solicitação de abertura de inquérito.
E isso só ocorreu após pressão da ministra Rosa Weber, que é a relatora da investigação sobre a suspeita de prevaricação do chefe do Executivo no caso da compra da vacina indiana Covaxin.
Neste caso, a Procuradoria enviou parecer inicialmente dizendo que seria impróprio um inquérito na esfera judicial porque a CPI da Covid ainda estava em funcionamento e já investigava o caso.
A ministra, então, endureceu o tom. Afirmou que não há previsão legal para que a Procuradoria espere os trabalhos de comissão parlamentar de inquérito para investigar crimes.
Disse ainda que, “no desenho das atribuições do Ministério Pu?blico, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da Repu?blica”.
Em novembro, por meio de dez pedidos de providências enviados ao STF sob sigilo, a PGR prestou contas do que fez após analisar o relatório final da CPI, entregue a Aras no final de outubro. Dos dez pedidos, seis envolvem Bolsonaro.
Partir diretamente para um inquérito seria uma possibilidade, avaliam integrantes da Procuradoria a partir de uma leitura das conclusões da CPI, mas o chefe do MPF (Ministério Público Federal) optou, mais uma vez, pela apuração preliminar interna.
Especificamente sobre essa situação relacionada às conclusões da CPI, a PGR informou que a justificativa para a abertura de apurações preliminares foi comunicada ao Supremo nos dez pedidos de providência enviados à corte.
Para sua surpresa, porém, Aras soube no início de dezembro da decisão de Moraes de abrir inquérito para averiguar o caso da falsa associação entre a Covid-19 e o risco de contrair o vírus da Aids.
O pedido foi endereçado diretamente ao magistrado por ser ele o relator do inquérito das fake news, que apura a disseminação de notícias falsas e ataques a instituições.
Aras contestou a decisão, sob a justificativa de que seria um procedimento irregular porque haveria duplicidade de investigação. O ministro não acolheu os argumentos.
A visibilidade de inquérito que tramita no tribunal é geralmente maior do que a de uma apuração preliminar interna que corre na PGR.
Moraes é um dos ministros do Supremo mais críticos da estratégia do procurador-geral de abrir apurações preliminares internas sem o acompanhamento judicial.
“Não basta ao órgão ministerial que atua perante a corte, no caso, a Procuradoria-Geral da República, a mera alegação de que os fatos já estão sendo apurados internamente”, disse.
“Não se revela consonante com a ordem constitucional vigente, sob qualquer perspectiva, o afastamento do controle judicial exercido por esta corte suprema em decorrência de indicação de instauração de procedimento próprio [na Procuradoria].”
Ele afirmou que somente informação e apresentação ao STF dos documentos que mostrem o andamento das investigações, com a indicação de eventuais diligências já realizadas ou ainda a serem feitas, garantem a plena supervisão judicial.
Aras alega que “reparte frequentemente com a corte informações” acerca do trabalho e que busca “não inundar a Suprema Corte com o expressivo volume de representações que são diuturnamente formalizadas”.
De acordo com ele, as representações criminais são processadas como “notícia de fato” na PGR para funcionarem como uma espécie de “purificador e de anteparo à corte”.
“Evitando-se que centenas de representações, algumas apócrifas, desconexas e/ou infundadas, aterrizem direta e desnecessariamente no campo da supervisão judicial da Suprema Corte”, disse em manifestação recente enviada ao STF.
Afirmou ainda que não diverge dos magistrados sobre a obrigatoriedade da supervisão judicial pelo tribunal, mas que a “notícia de fato” e inquérito são procedimentos que não se confundem.