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Política & Poder

A dona da selva

Procuradora Federal foi primeira autoridade brasileira ameaçada de levar bala na testa por defender direitos

Gustavo Mariani

09/10/2023 10h32

Quando era uma adolescente, com seus 15 na idade, Lúcia Helena vivia enchendo o saco do pai – fazendeiro e titular do cartório de registros de imóveis de Campina Verde, no chamado Pontal do Triângulo Mineiro -, para aprender o ofício. Terminou dobrando o homem e gostado tanto daquilo que, tempos depois, já estava estudando Direito na capital. Tornou-se a melhor aluna de sua turma e levou um professor francês – convidado da Universidade Federal de Minas Gerais – a arrumar-lhe uma bolsa de estudos para concluir na entidade a qual ele era ligado, em Paris. Ela foi e, além da escola da capital francesa, estudou também, em Lyon.

De volta às Mina Gerais, amiga íntima das leis do Direito Internacional, Lúcia estudou mais e especializou-se em Direito Trabalhista. E tornou-se inimiga dos patrões, pois não admitia vê-los querendo passar pobres trabalhadores pra trás. “Tinha gente que ia para a audiência com os pés descalços, não tinha dinheiro pra comprar sapato”, lembra. E, de tanto ódio aos patrões e para não mais vê-los, inscreveu-se e foi aprovada em concurso para Procurador Federal. Beleza! Só que, em vez de enfrentar patrões que queriam roubar “desapatados”, ela pegou pela frente barra muito mais pesada.

Lúcia já servia ao Estado trabalhando em Brasília, quando o seu chefe chamou-lhe para indagar se ele teria coragem de resolver problemas para o INCRA–Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, no violento Pará. Não só topou, como respondeu o que, hoje, a rapaziada fala: “Fui!” – e foi. Antes de ir, a imprensa divulgou por lá a missão dela e, ao desembarcar no aeroporto de Belém, foi cercada por homens armados. “Nunca imaginei ser recebida por um comitê de recepção daqueles”, conta a destemida ex-procuradora, que mede 1m54cm de altura.

Malmente começou a trabalhar no Pará, Lúcia ganhou um título: primeira brasileira ameaçada de morte por combater ilegalidades com terras no pais. Resultado: quando precisou atravessar rios e igarapés para visitar áreas com propriedade contestadas pelo INCRA, entrou em uma canoa com um homem na frente e um outro atrás dela, armados com metralhadoras, para protegê-la – não lhe era mais novidade. Lá pelo meio de um travessia, ela indagou aos proliciais se seria mesmo preciso metralhadoras naquele périplo. E ouviu de um dos policiais: “A senhora acha que é a rainha da selva, que nada pode lhe acontecer? Se a senhora já foi ameaçada de morte, não duvide se for esperada com balas numa curva do rio” – felizmente, não foi.

Lúcia Helena voltou a Brasília – “vivinha da Silva” – trazendo em seu relatório provas inequívocas de tremendas corrupções cartoriais. “Estrangeiros, principalmente, compravam a alma deles (agentes cartoriais) à base de dólares”, afirmou ela, que rodou o país, durante a década-1960, exibindo a raça e a coragem de uma Procuradora Federal, hoje, aos 83 de idade e que, ainda, dirige o seu automóvel.

Mas nem só de leis viveu (e ainda vive) Lúcia Helena. Também, era (ainda é) apaixonada pela culinária, desde garotinha, quando queimou um dos braços, mexendo num fogão de lenha da fazenda do seu pai. Quando estudava em Paris e tinha folga nos estudos, viajava pela Europa e África para conhecer in loco como se preparava pratos que lhe deixaram curiosos. Hoje, tem quatro gavetas cheias de cadernos com receitas do mundo que conheceu. Quase que diariamente está copiando uma delas para as amigas.

“Quando eu estava de partida para estudar (Direito) na capital (mineira) um fazendeiro amigo do meu pai disse-me que ‘eu estava inventando moda para escapar do tacho’, pois não concebia a mulher sem ser tomando conta da cozinha. Não sabia ele que eu, um dia, escaparia do Direito, nunca do tacho”, brinca ela que ofereceu ao repórter receita de doce considerado francês, mas que ela descobriu ser de Angola, e não levava leite, lembra ela, uma Procuradora imune a balas, bandidos e dólares ilegais – que legal!

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