Em discurso alusivo aos 75 anos da CIA, poucos meses após a invasão russa à Ucrânia, William Burns — diretor da agência sob Joe Biden e ex-embaixador dos EUA em Moscou — descreveu o nosso tempo como um “momento de rara plasticidade”. Um desses momentos incomuns que reconfiguram a história, com implicações de difícil previsão.
Foi num tempo assim, recordou Burns, que a CIA foi criada. A era atômica começava, e a expressão “Cortina de Ferro,” cunhada por Churchill em 1946, marcava o início da Guerra Fria. A revolução tecnológica, nascida do esforço bélico — radar, motor a jato, plásticos e transistor — passava ao uso civil, e a TV e os primeiros computadores abriam caminho à sociedade da informação.
A vitória de Donald Trump ocorre neste outro momento plástico, num cenário bem mais turbulento do que em 2016. O quadro é alarmante: na Europa, a maior guerra desde 1945 reacendeu o temor nuclear; no Oriente Médio, conflitos ameaçam se alastrar. A ascensão da China marca uma nova divisão de poder — uma nova Guerra Fria? Ao fundo, a corrida pelas tecnologias do século XXI — IA, computação quântica, biotecnologia — avança em paralelo à disputa por materiais e cadeias produtivas estratégicas. Tudo em um cenário de enfraquecimento do multilateralismo, das normas do comércio mundial, e sombreado pelas mudanças climáticas.
Para muitos eleitores americanos, Trump é talhado para estes tempos de transformações: mudanças tecnológicas, fragmentação da informação, erosão das certezas culturais e sociais.
As análises sobre a reeleição de Trump convergem em dois fatores principais: economia e imigração. Na economia, apesar do crescimento e do controle da inflação ao final do governo Biden, prevaleceu a lembrança das dificuldades. Um dado fala por si: sob Trump, os salários reais subiram quase 7%; com Biden, recuaram até 3,8% no auge da inflação. A crise migratória, por sua vez, tem sido fonte de inquietação e foi habilmente explorada como arma política. Some-se a isso o atentado contra Trump, que pode ter suavizado sua imagem com certos grupos, e lhe conferido inesperada aura de simpatia e força.
Mas a volta de Trump vai além de uma vitória expressiva; é a aposta em um líder “forte”, disposto a dobrar normas e a romper tradições, atitude que se supõe necessária em tempos de desafio à liderança americana e de muitas incertezas. Neste momento plástico, sua figura emerge como uma resposta provisória para tempos que parecem clamar por clareza e direção.
Quatro anos sob o cerco do Judiciário americano não enfraqueceram Trump; pelo contrário, saiu reforçado do processo. Agora, com forte mandato do povo americano, ele promete make America great again e, às portas da Casa Branca, quer chegar, chegando, como se diz. Que tempos!
João Marcelo Chiabai da Fonseca, advogado, consultor e mestre em Políticas Públicas pela Escola de Estudos Internacionais Avançados (SAIS) da Universidade Johns Hopkins