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Nicarágua nega pedido do Brasil para cooperar em caso de brasileira morta no país

Estudante de medicina, Raynéia, que não era uma manifestante anti-Ortega, foi morta em um bairro nobre de Manágua enquanto dirigia

FolhaPress

09/06/2023 8h59

Foto: AFP

MAYARA PAIXÃO
SÃO PAULO, SP

A ditadura Nicarágua negou pedido do Brasil para colaboração no caso do assassinato da brasileira Raynéia Gabrielle Lima, morta em 2018 em Manágua no ápice dos protestos contra o regime.

O MPF (Ministério Público Federal) pediu à Justiça nicaraguense acesso à documentação sobre o crime em março. A negativa da ditadura, liderada por Daniel Ortega e sua mulher e número 2 do regime, Rosario Murillo, veio com a justificativa de que se trata de “crime político anistiado”, mostra documento ao qual a Folha de S.Paulo teve acesso.

Estudante de medicina, Raynéia, que não era uma manifestante anti-Ortega, foi morta em um bairro nobre de Manágua enquanto dirigia. O regime condenou o segurança privado Pierson Gutiérrez Solís a 15 anos de prisão, mas depois o anistiou sob uma controversa lei que libertou responsáveis pela repressão no país.

Segundo a mídia nicaraguense, Solís é militante da Frente Sandinista de Libertação Nacional, de Ortega, e trabalhava como segurança na Albanisa, parceria estatal com a petroleira estatal venezuelana PDVSA.
A região da sede da companhia, a 500 metros de onde Raynéia foi morta, era um dos pontos de confronto de estudantes com forças do regime e estava ocupada por paramilitares, que ajudaram a defender o regime de forma extraoficial e usavam o tipo de arma que a matou.

À época da morte, Pierson se apresentou como autor do crime. Ele disse ter visto o veículo da estudante em alta velocidade, achou que corria perigo, pegou uma arma em seu carro e atirou. A mãe de Raynéia, Maria José da Costa, e seus advogados, nicaraguenses hoje no exílio, alegam que ele foi um bode expiatório da ditadura e pediam uma reparação civil. Também essa solicitação foi negada.

Como mostrou o jornal Confidencial, Wendy Morales, procuradora-geral da Nicarágua, comunicou que a obtenção de subsídios para a reparação tampouco seria possível porque “a lei de anistia cobre todos os delitos políticos e comuns tipificados pelo ordenamento jurídico”.

O Brasil poderia fazer novo pedido de cooperação internacional, mas não há expectativa de que Manágua abra algum diálogo para investigar o assassinato. A mãe de Raynéia pede agora à Procuradoria de Pernambuco, responsável por analisar o tema no Brasil, que o governo aplique o princípio de extraterritorialidade, previsto no Código Penal e que permite ao país julgar crimes contra brasileiros no exterior.

“Foi-me negado o acesso à Justiça e o direito de ser ouvida por um tribunal imparcial”, diz Maria José em ofício à Procuradoria. “Não me foi oferecida proteção, informação, apoio e assistência pelas autoridades nicaraguenses. O assassinato de minha filha é uma violação do direito à vida, uma execução extrajudicial.”

Os advogados da família, reunidos na Acción Penal, iniciativa que, do exílio, faz a defesa de presos e perseguidos políticos, sustentam o pedido de acionamento do mecanismo de extraterritorialidade.

Um dos responsáveis pelo caso, que prefere não se identificar para preservar a família, que vive na Nicarágua, diz que, uma vez que o Brasil se prontificou a acionar a extraterritorialidade no caso do jogador Vinicius Junior, vítima de racismo na Espanha em maio, também o deveria fazer no caso de Raynéia.

Os advogados alegam que o processo levado a cabo contra Pierson, o assassino confesso, constitui fraude processual para evitar qualquer processo que permitisse ao Brasil atuar na investigação.

Ainda que o mecanismo seja válido para o caso, há um entrave: Solís foi anistiado. Segundo o Código Penal, não ficam sujeitos à lei casos em que a pessoa foi absolvida, perdoada ou cumpriu pena no exterior.

Em outra frente, a mãe de Raynéia tenta contato com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem pede pressão contra Ortega, aliado político histórico do Partido dos Trabalhadores, ainda que o endurecimento da ditadura tenha feito alas do partido pedirem distanciamento.

Em março, ela enviou uma carta ao líder brasileiro, que foi recebida pela equipe do petista. Ela pede um encontro com ele, mas ainda não foi informada sobre nenhuma data possível para uma reunião.

“Quando Vossa Excelência se candidatou, renasceu a esperança de um coração sofrido de uma mãe que vê no senhor a ajuda necessária para que o caso de minha filha seja resolvido, e os culpados, punidos”, escreveu Maria José a Lula. “Desde o crime venho pedindo justiça sem obter êxito, pois o presidente em exercício [Ortega] cobriu todas as evidências que tinha como prova o verdadeiro assassino, que foi militar, para que o país não arque com as responsabilidades pela morte de uma cidadã brasileira.”

Hoje, o caso da brasileira Raynéia também é analisado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), um braço da OEA (Organização dos Estados Americanos), da qual o Brasil faz parte. Em tese, a Nicarágua também integra a organização, mas rompeu qualquer via de diálogo com a entidade nos últimos anos.

Em março passado, a panamenha Esmeralda Trotiño, comissária responsável pelo caso na CIDH, disse à Folha de S.Paulo que ele já foi avaliado e que a comissão prepara um informe final a ser divulgado em breve.

Organismos internacionais como a ONU se manifestam com frequência sobre o agravamento da situação na Nicarágua. O Alto Comissariado de Direitos Humanos disse na última semana que a ditadura usa o sistema de Justiça para silenciarcríticos. A equipe liderada pelo austríaco Volker Türk diz que, apenas em maio, 63 pessoas foram detidas de forma arbitrária no país, 55 das quais acusadas de conspiração para prejudicar a integridade nacional ou de difundir notícias falsas.

“O governo usa esses enquadramentos para silenciar qualquer crítico”, disse a porta-voz Marta Hurtado a jornalistas em Genebra.

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