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Mundo

Guerra da Ucrânia faz Alemanha adotar política de defesa inédita

Até aqui, a Alemanha sempre seguia as estratégias da Otan, aliança militar ocidental que integrou em 1955, dez anos após a derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial

FolhaPress

14/06/2023 13h09

Foto: Divulgação

IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP

Em mais uma demonstração patente de como a Guerra da Ucrânia alterou a geografia política do mundo, a Alemanha divulgou nesta quarta (14) a primeira Estratégia de Segurança Nacional de sua história.

O documento vinha sendo discutido há anos, mas foi a invasão promovida por Vladimir Putin em 24 de fevereiro de 2022 que o tornou prioritário. O texto coloca a Rússia como a maior ameaça à segurança europeia e sugere que a China, maior aliada de Moscou, pode ser um fator de desestabilização -mas sem acusações frontais, dados os laços comerciais e políticos com Pequim.

Até aqui, a Alemanha sempre seguia as estratégias da Otan, aliança militar ocidental que integrou em 1955, dez anos após a derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial. O trauma nacional tem várias camadas, mas na superfície política o pacifismo e a adesão ao multilateralismo em nome da estabilidade na Europa sempre foi prevalente.

Isso, claro, escamoteava alguns fatos, como o de que a Alemanha é uma das maiores exportadoras de armas do mundo. Ocupa o quinto lugar do ranking do Instituto de Pesquisas da Paz de Estocolmo, com 4,2% do mercado global de 2018 a 2022 -atrás de EUA, Rússia, China e França.

Ao longo dos anos, em um processo que explodiu com a demissão da ministra da Defesa no começo deste ano, deixou as prioridades de segurança nas mãos dos aliados, focando na sua pujança de maior economia europeia. De tempos em tempos, como nos anos de Donald Trump presidente (2017-2021), era acusada de leniência.

Mas foi a guerra o gatilho. Logo depois da invasão, o recém-empossado premiê Olaf Scholz fez o famoso discurso em que proclamou a “virada de era” e anunciou um fundo de EUR 100 bilhões (R$ 520 bilhões hoje) para a compra de caças americanos F-35 e europeus Thyphoon, helicópteros e outros produtos.

Prometeu gastar mais de 2% do Produto Interno Bruto, a meta da Otan, a partir de 2024.

Tendo despendido 1,3% do PIB com defesa em 2022, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (Londres), Scholz parece ter adequado seu discurso no documento. Ele prevê um “gasto médio de 2% ao longo de anos” a partir de 2024, o que é algo diferente da promessa anterior.

O país tem, no ranking britânico, o sétimo lugar em orçamento militar em 2022 (US$ 53,4 bilhões, ou R$ 258,7 bilhões hoje), com um gasto real aferido de US$ 59 bilhões (R$ 285,8 bilhões). Soma 16% do gasto europeu com defesa, o que por sua vez equivale a aproximadamente metade do que aplicam no setor os EUA.

“Esta é uma grande mudança em como nós lidamos com a política de segurança”, disse Scholz, que desde que assumiu a cadeira da longeva premiê Angela Merkel no fim de 2021 enfrenta acusações de prometer muito, e entregar pouco, em especial na ajuda militar à Ucrânia. Até um verbo, “scholzar”, foi criado em forma de meme para isso.

Nas últimas semanas, discursos crescentemente agressivos do chanceler (com os premiês são chamados na Alemanha e na Áustria) têm gerado especulação acerca de eventuais novos rumos -ou apenas a conveniência política.

Além da questão de gastos e prioridades, a estratégia aborda outros riscos percebidos, notadamente a mudança climática e o risco de emergências sanitárias, uma obrigação de países após a eclosão da Covid-19 em 2020.

Pequim, a rival estratégica de Washington e aliados na Guerra Fria 2.0, surge como uma preocupação.

“Um documento só sobre a China será elaborado”, afirmou Scholz. Ele, assim com o presidente francês, Emmanuel Macron, mantém uma relação cuidadosa com o governo de Xi Jinping.

Do ponto de vista histórico, ainda é algo a ver se as mudanças irão de fato marcar uma nova era, como diz Scholz. Isso traz muitas implicações, como seria natural quando o assunto é o país que gestou a Primeira Guerra Mundial (1914-18) no militarismo radical da elite prussiana que o comandava, e o segundo conflito global na distopia nazi-fascista.

Por evidente, a Alemanha é parte da Otan e submissa, no fim do dia, aos desígnios de segurança de Washington. Mas tem tentado tirar sua musculatura militar da flacidez que a caracterizou, com forças de 183 mil militares consideradas pouco eficazes. Está sediando o maior exercício militar aéreo da história da Otan, o Air Defender 23. São 250 aeronaves de diversos países, 80 delas alemãs, em simulações de ataque e contra-ataque diversas.

Há muito simbolismo em jogo. Neste momento, tanques de fabricação alemã Leopard-1 e Leopard-2 pontificam, que Berlim demorou um ano para liberar o fornecimento por aliados a Kiev, pontificam a contraofensiva ucraniana contra áreas ocupadas por Moscou no sul e leste do país.

Para adensar o roteiro, os combates ocorrem justamente onde houve algumas das mais sangrentas batalhas blindadas da Segunda Guerra Mundial entre nazistas e soviéticos. E a Ucrânia não ajuda ao pintar, ao lado de seus tanques, cruzes brancas que lembram claramente as usadas pela Wehrmacht (as Forças Armadas de Aldolf Hitler), dando gás para a retórica de Putin que acusa Kiev de neonazismo.

Os dilemas não são só europeus. O Japão, cujo pacifismo nasceu tanto da imposição americana como a rejeição pela destruição que a guerra teve após o militarismo do início do século 20 e a aliança com os nazistas, também mudou de orientação com o beneplácito de Washington, aí no contexto do embate com a China.

Em um sinal eloquente do caráter global das mudanças, a Otan deverá abrir um escritório em Tóquio, segundo a imprensa japonesa, e aviões do país asiático estão participando do Air Defender 23.

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