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EUA estendem tapete vermelho para atrair a Índia contra China

Desde a Guerra Fria, a Índia sempre buscou navegar como ente não alinhado. Mas as restrições americanas a fornecer equipamento bélico a aliados fora da Europa

FolhaPress

20/06/2023 12h33

IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP

Na mesma semana em que reabriu os canais de comunicação com a China, os Estados Unidos estendem o tapete vermelho à Índia, um aliado essencial à sua política de contenção da arquirrival na Guerra Fria 2.0.

O premiê indiano, Narendra Modi, inicia nesta quinta (22) a terceira viagem de Estado de um líder de seu país -desde 1949, foram 32 visitas, mas só receberam tal deferência o presidente Sarvepalli Radhakrishnan em 1963 e o primeiro-ministro Manmohan Singh, em 2009. Antes, na quarta (21), o indiano encontra-se com empresários como Elon Musk (Tesla) em Nova York.

O presidente Joe Biden, ele mesmo recebendo apenas pela terceira vez uma visita de Estado em sua gestão iniciada em 2021, preparou um atrativo pacote de mimos para Modi levar para casa após a rodada de recepções, cerimônias e o pomposo jantar na Casa Branca na quinta.

Ele tem como principal ingrediente um acordo para que a Índia produza motores de caças F414, da americana GE, sob licença em seu território. Os futuros aviões de combate Tejas Mk2 serão equipados com eles, uma versão mais avançada dos motores GE F404 empregados na primeira geração da aeronave.

Além disso, Nova Déli será autorizada a gastar US$ 3 bilhões com 31 novos drones de vigilância marítima SeaGuardian, além de outros produtos. A mira de Biden aqui é dupla: visa equipar Modi para a crescente e perigosa rivalidade da Índia com a China, e ao mesmo tempo tentar afastar o aliado de sua tradicional relação militar com Moscou.

Desde a Guerra Fria, a Índia sempre buscou navegar como ente não alinhado. Mas as restrições americanas a fornecer equipamento bélico a aliados fora da Europa e sua proteção ao rival existencial dos indianos, o Paquistão, levaram Nova Déli a estabelecer uma forte aliança com os soviéticos.

Ela permanece até hoje, com Vladimir Putin sendo uma figura admirada na Índia, como aferiu pesquisa do Conselho Europeu de Relações Exteriores do ano passado.

Segundo o Instituto Internacional para Estudos da Paz de Estocolmo, de 2018 a 2022 a Índia foi a maior importadora de armas do mundo, e 45% do que comprou veio da Rússia. Nos últimos anos, houve um aumento na variedade, e a França surge em segundo lugar com 29% e os EUA vêm a seguir, com 11% do mercado.

Mas a realidade da Guerra Fria 2.0 e de sua primeira etapa quente, o conflito na Ucrânia, vem mudando isso. Como a Folha mostrou em março, a Rússia começou a atrasar algumas entregas militares para os indianos.

Isso não mudou o oportunismo clássico de Nova Déli, que transformou a Rússia em seu principal fornecedor de petróleo após as sanções ocidentais -basicamente, o produto vem com muito desconto.

Hoje, Moscou responde por 20% das importações petrolíferas indianas, dez vezes mais do que em 2021.

Com efeito, Modi recusou-se a condenar a invasão russa nas duas oportunidades de voto para isso na ONU e, apesar de fazer críticas ao militarismo de Putin e se colocar como um mediador não alinhado como o brasileiro Lula Inácio Lula da Silva, é visto largamente como simpático ao russo.

Em uma rara entrevista, publicada nesta terça (20) pelo Wall Street Journal, Modi disse que “algumas pessoas dizem que somos neutros”. “Mas não somos neutros, estamos do lado da paz”, completou, tergiversando.

Mas o fator China se coloca com peso, mesmo com a abertura sinalizada no encontro entre Xi Jinping e o secretário de Estado americano, Antony Blinken, na segunda (19). Desde 2020, os rivais asiáticos passaram a se enfrentar mais abertamente nos pontos disputados de fronteira que dividem no Himalaia.

“Vamos nos defender com dignidade”, afirmou Modi ao jornal americano.

Contribui também o fato de que Pequim substituiu Washington como patrono do Paquistão, o arquirrival também nuclear da Índia, investindo pesadamente em sua infraestrutura. Assim, o processo de aproximação com os EUA tornou-se natural.

“É uma questão em aberto se Washington pode capitalizar a oportunidade e promover uma parceria com a Índia que não seja apenas um alinhamento de defesa contra a China”, diz o diretor do centro de estudos Newlines Institute (Washington), Kamran Bokari.

Para corroborar a ideia de uma mudança, há o fato de que a Índia abraçou a iniciativa de Biden de reviver o Quad, grupo de segurança regional do Indo-Pacífico que reúne outros rivais da China: Japão e Austrália. E houve uma mudança expressiva na relação econômica entre os países.

De 2021 para cá, os EUA passaram a ser os maiores parceiros comerciais da Índia, após uma década dominada pelos chineses, que foram para o segundo posto. O fluxo comercial entre ambos os países passou de US$ 74,5 bilhões em 2017 para US$ 128,5 bilhões no ano passado, com uma rara vantagem na troca para os americanos.

A posição da Índia como país mais populoso do mundo e, apesar da grande fragmentação política e de uma desiguladade social brutal, ainda uma democracia, estimula o aprofundamento de laços. Nos últimos anos, Modi tem trabalhado para desestatizar setores importantes da economia, apesar do domínio claro de algumas grandes corporações.

Os efeitos se veem na pujança do setor de tecnologia da informação do país e em eventos como a maior compra de aviões comerciais da história, selada na segunda (19) entre a companhia indiana IndiGo e a europeia Airbus -uma sutil sinalização de Modi aos americanos acerca de seus alinhamentos múltiplos.

Na Índia, nem todos estão certos que este cenário bastará para afastar Modi de Putin, apesar de o russo ser o maior aliado do chinês Xi. Bem ou mal, também, tanto Nova Déli como Pequim têm assento para conversar no fórum Brics, que inclui Brasil, Rússia e África do Sul.

Além da questão do petróleo, “a cooperação técnico-militar ainda é muito mais profunda com os russos, e o fato de que os EUA vão suprir a Austrália com submarinos de propulsão nuclear, enquanto a Índia foi deixada de lado, levanta questões”, afirma Raj Kumar Sharma, da Escola de Assuntos Transnacionais da Universidade de Nova Déli.

Para Biden, por fim, há um componente de política doméstica na visita, de olho na eleição de 2024. Há hoje cerca de 5 milhões de indiano-americanos, e pesquisas mostram que eles são um dos grupos que mais passaram a votar nos últimos anos. A vice do democrata, Kamala Harris, é a primeira mulher, negra e de origem também indiana no cargo.

Há outros fatores que a “realpolitik” tende a deixar de lado, mas que sempre pesam. Em 2005, quando era o polêmico governador da província de Gujarat, Modi teve o visto diplomático rejeitado pelos EUA por seu apoio a extremistas hindus que atacavam a minoria muçulmana. No poder federal, o indiano é visto como um proponente de uma verdadeira limpeza étnica pró-hindus, que compõem cerca de 80% da população.

“Tudo depende de como a Índia evolui em termos de estabilidade política e reformas econômicas para atrair investimentos. O nacionalismo religioso de direita que está levando a Índia para o caminho de ser uma democracia majoritariamente iliberal pode atrasar seu desenvolvimento”, diz Bokhari.

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