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Decreto anti-rave de Meloni vira alvo de críticas por brecha para criminalizar protestos

O primeiro decreto-lei da primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, mal foi anunciado e já deixou juristas perplexos

FolhaPress

03/11/2022 9h59

Foto: AFP

MICHELE OLIVEIRA
MILÃO, ITÁLIA

O primeiro decreto-lei da primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, mal foi anunciado, na segunda (31), e já deixou juristas perplexos, além de colocar em ebulição sindicalistas, estudantes e políticos da oposição.

O ponto mais controverso é a criação de um crime com a intenção de combater festas ilegais, mas que, devido à redação vaga do texto, pode significar uma brecha para criminalizar protestos.

A justificativa do governo de ultradireita para a medida é coibir a realização de eventos do tipo rave, como o que ocorreu no fim de semana na periferia de Modena, no norte da Itália, com milhares de pessoas. A festa, em um galpão abandonado, com duração prevista de três dias, foi organizada de forma clandestina e, após negociações com a polícia, foi interrompida sem confrontos.

Quase ao mesmo tempo em que o evento era desmontado, Meloni anunciava o decreto-lei que introduz no código penal italiano o Artigo 434-bis, que prevê prisão de 3 a 6 anos e multa de até 10 mil euros (R$ 50,4 mil) para quem organizar ou promover a ocupação de terrenos ou edifícios públicos e privados por mais de 50 pessoas e ameaçar “a ordem, a segurança ou a saúde pública”.

Para quem apenas participa, a pena é menor, mas o decreto não especifica qual é a punição.

“Diante da enésima festa rave ilegal na Itália, com pessoas chegando de metade da Europa, o Ministério do Interior agiu rapidamente para dar o sinal de um Estado que não se mostra míope diante da violação reiterada da lei”, afirmou a primeira-ministra. A opção pela criação de um crime foi, segundo Meloni, para que os eventos possam ser enquadrados como ameaça à segurança pública, não só ao patrimônio.

Especialistas consideram a solução mal formulada e desproporcional. O texto, argumentam, não é específico e, assim, poderia ser usado para criminalizar outros tipos de aglomeração, como protestos, num momento em que desponta na Europa uma onda de insatisfação com o custo de vida. O decreto, já em vigor, tem de ser convertido em lei em até 60 dias pelo Parlamento, onde o governo tem maioria.

Para a União dos Universitários, trata-se de um ataque perigoso ao direito de manifestação. “O decreto esconde a legitimação de ações repressivas e punitivas inclusive contra protestos nas ruas, nas escolas e em locais de trabalho”, afirmaram os estudantes, que anunciam uma mobilização nacional para o dia 18.

A Anistia Internacional, ONG que atua na defesa dos direitos humanos, também criticou. “O decreto corre o risco de ter uma aplicação ampla, discricionária e arbitrária em detrimento do direito de protesto pacífico.”

Para Vittorio Manes, professor de direito penal da Universidade de Bolonha, do ponto de vista jurídico a medida causa perplexidade por duas razões. Em primeiro lugar, pelo fato de o novo crime ser introduzido no código penal por meio de um decreto do governo, que deveria estar vinculado a um pressuposto de necessidade de urgência, o que, segundo ele, não é o caso. “A primeira perplexidade está no método. A solução poderia ter sido adotada em um processo legislativo muito mais ponderado”, disse ele à Folha de S.Paulo.

Depois, tem a ver com o mérito. Para o jurista, o crime é descrito com conceitos muito genéricos, uma vez que qualquer reunião de mais de 50 pessoas pode ser considerada potencialmente perigosa e ser punida com sanções graves. “É uma norma afetada por uma vagueza excessiva. Pode ser aplicada a uma série de situações concretas que não são exatamente essa a que se quer dar uma resposta”, avalia.

Sobre as intenções do governo, o professor avalia que o decreto é exemplo emblemático de uma “norma-manifesto”. “Se faz uso simbólico do direito penal para comunicar uma mensagem de resposta forte do Estado. E isso é sempre um uso impróprio. O direito penal deve ser usado de forma proporcional.”

O debate atraiu a oposição, que acusa Meloni de querer instalar um “Estado policial”, nas palavras do ex-premiê Giuseppe Conte, que é advogado. Além de considerar a medida desproporcional para o combate às raves clandestinas, critica a brecha para que autoridades possam considerar crime outras aglomerações.

“Esperávamos como primeiro ato do governo uma intervenção para as contas altas, mas, em vez disso, temos uma exibição muscular de um governo imbuído de uma ideologia repressiva”, disse.

Conte fez referência a outra aglomeração no domingo (30), em Predappio, cidade onde nasceu e está enterrado o ditador Benito Mussolini. Como ocorre anualmente no fim de outubro, milhares de admiradores do regime fascista se reuniram ali para celebrar a Marcha sobre Roma, que significou a chegada do ditador ao poder, há cem anos. “O governo disse que esse encontro é uma coisa diferente [da rave de Modena], mas deveria saber que se trata de um crime de apologia do fascismo.”

Também na segunda-feira, outros dois anúncios de Meloni foram alvo de críticas. No mesmo decreto-lei, outro artigo determinou o fim do afastamento de médicos e de operadores sanitários que não tomaram a vacina anti-Covid. Cerca de 4.000 pessoas poderão voltar ao trabalho em hospitais e consultórios do sistema público, medida que agrada os ativistas antivacina, parte da base eleitoral da primeira-ministra.

Além disso, foi nomeado para o cargo de vice-ministro da Infraestrutura, pasta comandada por Matteo Salvini, o deputado Galeazzo Bignami, considerado um fiel aliado de Meloni. Na Itália, ele é conhecido por fotos tiradas em 2005 que o mostram vestido com símbolos nazistas, como a braçadeira com a suástica.

“Foi uma grande besteira. Pedi desculpas, mas essa foto não me representa”, disse ele sobre o episódio.

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