FERNANDA PERRIN
WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS)
O uso de câmeras corporais por policiais se difundiu nos Estados Unidos nos últimos anos com a promessa de coibir o uso excessivo da força e melhorar a relação das autoridades com as comunidades, sobretudo após a enorme repercussão da morte de cidadãos negros.
Os casos mais emblemáticos foram as mortes de Michael Brown em Ferguson, em 2014, de Freddie Gray em Baltimore, em 2015, e George Floyd em Minneapolis, em 2020.
Passados dez anos das primeiras experiências, porém, a eficácia da custosa tecnologia não é clara. Alguns estudos identificam efeitos positivos, como queda das queixas contra ações policiais, enquanto outros não veem nenhum impacto, e outros, ainda, consequências negativas.
Uma das principais razões para essas diferenças não está na tecnologia, mas na política que a acompanha: em que momento um policial deve ativá-la e desativá-la, quem tem acesso a essas imagens e, não menos importante, quando.
Praticamente 8 em cada 10 policiais americanos usam uma câmera corporal, segundo levantamento de 2020 feito pelo Departamento de Estatísticas de Justiça, o mais recente disponível.
O impulso veio principalmente após o relatório Policiamento no Século 21, de 2015, produzido por uma força-tarefa criada pelo ex-presidente Barack Obama. Uma das principais apostas do grupo para melhorar a transparência e a confiança nas autoridades era o uso de câmeras corporais.
Desde então, o Departamento de Justiça, equivalente a um ministério, disponibilizou ao menos US$ 70 milhões (R$ 344 milhões, na cotação atual) em recursos para incentivar a adoção da tecnologia.
Foi criado também um programa de implementação, cujo objetivo é auxiliar os departamentos que adquirem o produto. Um site específico oferece, além de informações, uma checklist para elaboração da política e uma calculadora de custos, entre outros recursos.
Isso porque, nos EUA, a decisão de usar as câmeras cabe, em geral, a cada departamento policial local -que atende uma cidade ou uma região metropolitana, por exemplo.
FREQUÊNCIA DE USO
Dados oficiais indicam que o equipamento tende a ser mais comum quanto maior o número de habitantes atendidos. Todos os departamentos em regiões com mais de 1 milhão de pessoas -Nova York, por exemplo- reportaram usar a câmera. Já entre aqueles que atendem até 2.500 pessoas, o percentual é de 65,3%.
Alguns estados começaram a determinar o uso das câmeras em todo o seu território. Hoje, eles são sete (Carolina do Sul, Colorado, Connecticut, Illinois, Maryland, Nova Jersey e Novo México), segundo levantamento da Conferência Nacional das Legislaturas Estaduais. Outros, como a Califórnia, disponibilizam fundos para financiar a aquisição do equipamento pelos departamentos policiais interessados. Além disso, forças federais, como o FBI, também usam câmeras corporais.
POLÍTICAS DE ATIVAÇÃO
As políticas que orientam o uso dos equipamentos e das imagens variam enormemente. Alguns departamentos possuem diretrizes claras quanto ao momento em que a câmera deve ser ativada, e outros já usam uma tecnologia que é ativada automaticamente quando a arma é retirada do coldre -caso de Louisville, no Kentucky. Na outra ponta, há departamentos que não têm uma regra clara.
“Se os policiais não ligarem suas câmeras quando devem, então as câmeras serão inúteis”, escreve Chuck Wexler, diretor-executivo Fórum Executivo de Pesquisas da Polícia (Perf, na sigla em inglês).
Há também orientações sobre o que não gravar. Em geral, a regra é que conversas com informantes, vítimas de crimes sexuais e crianças sejam preservadas. Um cidadão também pode pedir que a câmera seja desligada, mas as políticas tendem a deixar a decisão a cargo do policial.
ARMAZENAMENTO E AUDITORIA DOS VÍDEOS
Quanto maior o número de policiais, maior a quantidade de material gravado a ser armazenado, o que implica despesas com a contratação de servidores ou, mais comumente, um serviço de nuvem. Para evitar um acúmulo muito grande, diversos departamentos estabelecem prazos em que um vídeo é armazenado, com exceção para aqueles que retratem “eventos críticos”.
A revisão dos vídeos, por sua vez, costuma ocorrer por amostragem, feitas por supervisores, funcionários contratados para essa função, ou terceiros.
Recentemente, ferramentas de inteligência artificial (IA) vêm sendo adotadas nesse processo -caso de Los Angeles-, fazendo um filtro em imagens que mostrem uso de linguagem inapropriada ou outras infrações de conduta pelos policiais.
A aplicação de IA também abre a possibilidade de capacitar as câmeras com mais funções, como reconhecimento facial e análise de sentimentos. Esses usos, porém, estão em debate.
DIVULGAÇÃO DOS VÍDEOS AO PÚBLICO
Outra variação é o que é feito com as imagens. Segundo levantamento feito pelo Perf em uma amostra de 127 políticas para câmeras corporais, apenas 14% tratavam da divulgação de “incidentes críticos”.
Alguns departamentos dão ampla margem de decisão para o chefe de polícia definir se e quando os vídeos são tornados públicos, liberando o acesso em casos específicos (se o requerente está envolvido na cena, por exemplo) ou por meio de pedidos justificados de acesso à informação.
Outros têm como regra a liberação dentro de um prazo.
ACESSO POR POLICIAIS SOB SUSPEITA
Um dos principais debates atuais sobre o uso das câmeras é o acesso das imagens por policiais envolvidos em incidentes em que seu comportamento está, de alguma forma, sob suspeita -casos em que a arma é disparada, há queixas de uso excessivo da força ou quando ocorrem mortes.
Um levantamento feito pelo Perf em 156 agências no ano passado apontou que, em 56% delas, os policiais podem ver a gravação antes de fornecerem seu testemunho sobre o ocorrido. Por outro lado, outros departamentos, como o de Washington DC, proíbem esse acesso.
Para críticos, essa possibilidade permite que o policial adapte seu depoimento ao que as imagens mostram, protegendo-se, assim, de eventuais acusações. Já defensores dizem que o acesso ajuda a elaborar melhor os relatos de momentos de estresse elevado, em que a memória torna-se pouco confiável.
Buscando chegar a um meio-termo, o Perf atualizou suas diretrizes, recomendando que um primeiro depoimento, caracterizado como uma “entrevista de percepções”, seja coletado do policial antes de ele ter acesso às imagens. Depois, tendo visto a gravação, ele pode fornecer um segundo relato. Essa política já é adotada em Portland (Oregon).
RESULTADOS
Até agora, os estudos não são conclusivos sobre os impactos das câmeras nos objetivos propostos: melhorar a confiança da população na polícia, coibir o uso excessivo de força e ajudar em investigações.
“Uma revisão abrangente de 70 estudos sobre o uso de câmeras corporais constatou que a maior parte das pesquisas sobre câmeras corporais não demonstrou efeitos consistentes ou estatisticamente significativos”, afirma o Instituto Nacional de Justiça, braço do Departamento de Justiça americano voltado para estudos e avaliação de políticas públicas.
Segundo o órgão, mais estudos são necessários para permitir uma análise do impacto do uso das câmeras.
Um balanço feito pelo Perf dos dez anos de uso das câmeras no país, publicado no mês passado, chegou a conclusão semelhante.
O principal resultado observado em pesquisas foi a queda do número de queixas da população contra policiais. Segundo o relatório, porém, não está claro se isso ocorreu porque as autoridades melhoraram seu comportamento ou se cidadãos deixaram de fazer denúncias infundadas.
Com relação ao efeito do uso das câmeras em investigações, estudos indicam um impacto positivo no avanço de ações quando a vítima não coopera -algo comum em casos de violência doméstica.
O relatório aponta alguns estudos específicos com resultados promissores. Em Chicago, por exemplo, a adoção das câmeras levou à queda do número de investigações administrativas arquivadas por falta de evidências, e a um número maior de medidas disciplinares contra policiais.
Outro resultado relevante foi a eliminação da disparidade racial nas queixas arquivadas ou rejeitadas -até então, denunciantes negros eram a maioria.
Já em Phoenix, no Arizona, embora tenha ocorrido uma redução no número de queixas dos cidadãos, houve um aumento no uso da força e menos abordagens iniciadas pelos policiais.
REAÇÃO DA POLÍCIA
Inicialmente, houve resistência de associações de policiais, que manifestaram preocupações com a privacidade dos agentes e má-fé no uso das gravações.
No entanto, esses argumentos não resistiram à pressão social crescente após as mortes de cidadão negros por policiais.
Com isso, as associações policiais passaram a priorizar a negociação das regras, sobretudo as diretrizes sobre acesso às imagens.
Outro front é a negociação de um bônus pela adoção das câmeras, sob argumento de que o equipamento implica mais trabalho. Em Worcester (Massachussetts), por exemplo, foi adotado um valor anual de US$ 1.300 para cada policial.