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Economia

Quebra de decisão tributária pelo STF gera insegurança jurídica, dizem especialistas

O Supremo determinou que casos tributários deliberados pela corte prevalecem sobre decisões transitadas em julgado

FolhaPress

09/02/2023 10h22

THIAGO BETHÔNICO E JOSÉ MARQUES
SÃO PAULO, SP, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)

A quebra de decisões definitivas em temas tributários, estabelecida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) nesta quarta-feira (8), é temerária, gera insegurança jurídica e pode ter um efeito negativo no caixa de diversas empresas do Brasil, avaliam especialistas.

O Supremo determinou que casos tributários deliberados pela corte prevalecem sobre decisões transitadas em julgado (quando não há mais possibilidade de recurso) anteriormente, ou seja, “quebram” as sentenças que eram definitivas.

Na prática, isso significa que um contribuinte que tenha obtido uma decisão tributária favorável no passado, mas que posteriormente o Supremo tenha decidido de modo diferente, pode ser acionado pela Receita Federal sem necessidade de uma ação rescisória.

Como a maioria dos ministros (6 a 5) decidiu não aplicar a chamada modulação dos efeitos, empresas que antes estavam isentas não só voltarão a pagar o tributo a partir de agora, como poderão ser cobradas retroativamente.

Com isso, julgamentos do STF com efeito vinculante -de repercussão geral e de controle concentrado de constitucionalidade- terão efeito imediato sobre sentenças anteriores.

As decisões precisarão respeitar, contudo, os princípios da anterioridade, que estabelece que aumentos de determinados tributos podem ser aplicados apenas no exercício seguinte ao da aprovação, e o da noventena -que determina um prazo de 90 dias para a cobrança.

O julgamento começou em 1º de fevereiro e foi encerrado nesta quarta. De um lado, contribuintes argumentavam que os efeitos das decisões que haviam obtido na Justiça para não pagar tributos continuavam valendo mesmo após o Supremo declarar a cobrança dos tributos constitucional.
Do outro, havia o entendimento da União de que não há mais validade dessas decisões após novo julgamento da Corte.

Um dos recursos que chegaram ao STF foi ajuizado pela União contra uma indústria têxtil que conseguiu ordem judicial, transitada em julgado em 1992, para deixar de recolher CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido). A decisão havia sido tomada pelo TRF-5 (Tribunal Regional Federal da 5ª Região).

Em 2007, porém, o Supremo decidiu que esse tributo era constitucional, ao julgar uma ADI (ação direta de inconstitucionalidade).

A CSLL é cobrada pela União e incide sobre o lucro líquido de empresas. A alíquota mais comum é de 9% sobre o valor, mas há casos em que a cobrança é ainda maior, a depender da atividade desempenhada. Para bancos, por exemplo, a alíquota é de 20%.

O tributo esteve no foco da decisão desta quarta, mas a cobrança pode valer para outros impostos que também passaram por mudanças de jurisprudência.

Em 2020, por exemplo, ficou decidido pela constitucionalidade da cobrança de IPI na revenda de produtos importados. O mesmo ocorreu em 2008, em relação a exigência de Cofins para sociedades uniprofissionais, como médicos, advogados e engenheiros.

“No Brasil até o passado é incerto.” É assim que Eduardo Maneira, sócio de Maneira Advogados e professor associado de Direito Tributário da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), avalia a decisão do STF desta quarta.

Segundo o especialista, a opção por não modular os efeitos é o mais preocupante. O mérito da definição, ele diz, não chega a ser um problema, e faz sentido que uma decisão de repercussão geral possa prevalecer sobre algo julgado anteriormente.

Maneira lembra que a discussão considerou, entre outras coisas, o respeito ao princípio da isonomia. Uma empresa poderia ter vantagem sobre uma concorrente em função de uma decisão judicial antiga que a isentasse de CSLL, por exemplo.

“O problema é que o Supremo disse isso pela primeira vez na semana passada. Então a modulação seria absolutamente necessária”, diz.

Segundo ele, o impacto de cobranças retroativas pode ser bilionário, especialmente no caso da CSLL.
Carolina Romanini, sócia do Cescon Barrieu na área tributária, também vê a decisão do Supremo como preocupante.

Ela lembra que o artigo 5º da Constituição estabelece que a lei não deve prejudicar a coisa julgada, o que pode ser um potencial ponto de conflito.

Assim como Maneira, ela também entende que o mérito da decisão é justa, pois pode corrigir distorções entre empresas isentas de impostos e outras que precisam pagar.

“Compromete-se a livre concorrência, a igualdade. Esses foram os princípios considerados pelo STF para julgar dessa forma.”

O problema, ela diz, é permitir cobranças retroativas. “Isso prejudica muito as empresas. Imagina uma subsidiária ter que explicar para a matriz estrangeira que vai precisar pagar um tributo sendo que havia uma decisão [de isenção] antes. Não tem segurança jurídica.”.

Romanini afirma que são muitos os casos de companhias que tiveram o direito de não recolher CSLL reconhecido e que agora terão que pagar o tributo referente a cinco anos anteriores, pelo menos.
O prazo que ela menciona diz respeito a uma trava legal que impede que a Receita Federal faça cobranças para além dos últimos cinco anos.

No entanto, Maneira diz que o início da cobrança retroativa será examinado caso a caso. Segundo ele, apesar da trava, há muitas situações em que a Receita fez autuações e execuções, mesmo com as companhias protegidas pela decisão judicial.

Nesses casos, o prazo de cinco anos não se aplica e a empresa pode ter tributos cobrados desde quando a decisão do Supremo passou a valer -no caso da CSLL, desde 2007, por exemplo.

Para ele, a não-modulação gera insegurança jurídica. “Fere a confiança no sistema, na coisa julgada. Sinceramente espero que embargos de declaração mudem isso”, afirma.

A legislação prevê que as partes envolvidas no processo entrem com embargos de declaração, que é um instrumento para quando há dúvida, erro, contradição ou obscuridade na decisão. O recurso pode ser interposto no prazo de cinco dias.

David Andrade Silva, tributarista e sócio do Andrade Silva Advogados, diz que eventuais embargos podem modificar a decisão do Supremo, mas é algo raro.

“Só quando há uma contradição muito grande no julgado, que inspiraria a alteração de um dos votos. Diria que é quase impossível essa decisão ser modificada”, afirma Silva, acrescentando que, historicamente, o Supremo não reforma decisão em função de embargos de declaração.
Romanini também acha difícil haver mudanças. Ela ainda lembra que no caso da tese do século (julgamento sobre o ICMS na base do PIS/Cofins), os embargos foram opostos em 2017 e julgados apenas em maio de 2021.

“Dificilmente há mudança de entendimento, mas alguma correção ou esclarecimento pode melhorar em algum aspecto o julgamento, talvez com relação à produção dos efeitos para o passado, que é flagrantemente retroativa e compromete a segurança jurídica e o princípio da irretroatividade”, afirma.
A advogada ainda teme que o Supremo possa fazer isso com outras questões, não apenas em assuntos tributários. “Esse é o perigo do julgamento. Estamos falando de mudar o passado”, diz.

É o que também preocupa Silva. “Na prática, a coisa julgada vai ficar sempre sob interrogação. Eu tenho uma decisão transitada em julgado, mas eu não sei se aquele tema vai ser ou não referendado pelo Supremo”, diz. “É uma coisa estarrecedora, de certa forma até preocupante. Recriaram o Direito”, acrescenta.

Ele diz que a decisão versa sobre a temática tributária apenas, mas a argumentação pode transbordar para além dessa matéria.

“O tema foi dado numa questão envolvendo a CSLL, mas eu me preocupo com a intenção desse entendimento”, afirma.

No caso da CSLL, Silva diz que o impacto pode ser alto, visto que muitas empresas se valiam de decisão transitada em julgado para não pagar o tributo. Segundo ele, algumas provisionavam bilhões de reais em isenção no balanço financeiro.

Jordão Oliveira, advogado tributarista no escritório Zilveti Advogados, também diz que a não-modulação gera uma grande insegurança jurídica. “É o risco Brasil. Como uma empresa que ganhou uma ação judicial reporta isso para a matriz?”, questiona.

Para ele, a decisão é preocupante para todos os contribuintes. “Aquilo que aprendemos na faculdade, de que a coisa julgada não pode ser alterada, exceto por uma ação rescisória específica, o STF acabou colocando uma pedra em cima.”
*
O que o STF decidiu?

Os ministros do STF decidiram que, em casos tributários, decisões da corte interrompem automaticamente efeitos de julgamentos anteriores (mesmo nos casos em que não havia mais possibilidade de recurso), sem necessidade de uma ação rescisória por parte da Receita na Justiça.

Quais são as condições?

Devem ser respeitados, por exemplo, os princípios da anterioridade e da noventena. O primeiro estabelece que aumentos de determinados tributos podem ser aplicados apenas no exercício seguinte ao da alteração, enquanto o da noventena estabelece um prazo de 90 dias. A previsão legal existe para não surpreender os contribuintes e dar tempo para eles se adaptarem ao novo regramento.

Que casos são afetados?

O STF se debruçou diretamente sobre dois casos, mas a tese apresentada pelos ministros vale para julgar todos os casos semelhantes.
Em ambas as ações, a União pretendia voltar a recolher a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de empresas que, na década de 1990, tinham ganhado na Justiça, com trânsito em julgado (sem possibilidade de recurso), o direito de não pagar o tributo. Depois, em 2007, o STF validou a cobrança da CSLL -mas ainda havia discussão sobre o recomeço da cobrança tributo, que, conforme decidido agora, pode ser reiniciada mesmo sem ação rescisória a partir do momento em que o STF decide pela cobrança.

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