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Brasil

Usar apenas fotos para identificar suspeitos está levando inocentes à cadeia, alertam instituições

Não há previsão legal para o reconhecimento fotográfico, que, apesar disso, é cada vez mais adotado nas delegacias

Redação Jornal de Brasília

11/11/2020 10h09

Ana Luiza Albuquerque e Diego Garcia
Rio de Janeiro, RJ

Douglas dos Santos estava em casa com a família quando sua vizinha lhe entregou uma carta com uma intimação para comparecer ao fórum. Chegando lá, o auxiliar de logística foi surpreendido com uma ordem de prisão, acusado de ter cometido um roubo na rodovia Presidente Dutra. Ele não tinha passagem pela polícia.

As vítimas do assalto haviam equivocadamente apontado Douglas, 31, como um dos suspeitos, com base em um reconhecimento fotográfico falho realizado em sede policial. Levou mais de um ano até que ele fosse absolvido em sentença proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio.

Douglas conseguiu se livrar da acusação, diferentemente de tantos outros inocentes que acabam condenados com base na identificação fotográfica. Ainda assim, ele levará para sempre as marcas dos 30 dias que passou na prisão.

“Nunca vai se apagar, foi humilhante. [No presídio de Benfica] jogaram fora minha cueca, tênis, camisa. Só fiquei com a calça durante nove dias, sem poder escovar os dentes, sem um sabonete para tomar banho. Nunca imaginei viver aquilo, ficar na cela com 150 pessoas”, disse à Folha.

O pesadelo do auxiliar de logística teve início em novembro de 2018, quando foi assaltado por criminosos em um carro e teve seus documentos levados. Poucos dias antes, os bandidos haviam roubado o veículo que dirigiam na ocasião.

Quando o carro foi recuperado pela polícia, no interior foi encontrada a carteira de trabalho de Douglas. De vítima, ele passou a suspeito.

Em seguida, a investigação e a acusação adotaram práticas questionáveis. Primeiro, a polícia realizou o reconhecimento fotográfico com a foto da carteira de trabalho de Douglas, tirada 15 anos antes, abrindo mão do reconhecimento pessoal.

Depois, o Ministério Público o acusou tendo como único indício o documento encontrado no carro roubado.

Em juízo, após serem apresentadas a uma foto atualizada do auxiliar de logística, as vítimas voltaram atrás e afirmaram categoricamente que ele não era um dos criminosos.

Não há previsão legal para o reconhecimento fotográfico, que, apesar disso, é cada vez mais adotado nas delegacias, onde são produzidos álbuns com fotos de pessoas consideradas suspeitas na região. Também tem sido comum esse tipo de procedimento a partir de fotos nas redes sociais.

Outra prática usual é o compartilhamento de imagens de suspeitos em grupos de WhatsApp de policiais militares, que posteriormente usam as fotos em identificações.

Especialistas e instituições criticam o uso de foto, diante da alta chance de erro e condenação de inocentes. A psicologia do testemunho, área de estudo do direito, indica que esse tipo de prova é frágil devido às “falsas memórias”, comuns distorções nas lembranças que ocorrem especialmente em situações e ambientes sugestivos, como uma delegacia ou um fórum.

No dia 27 de outubro, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) absolveu por unanimidade um homem condenado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina a mais de cinco anos de prisão com base apenas em identificação fotográfica.

O voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, acompanhado pelos colegas, determinou que o procedimento não deve servir como prova nas ações penais, funcionando apenas como uma etapa antecedente ao reconhecimento pessoal. Advogados esperam que a decisão do tribunal crie nova jurisprudência a respeito do tema.

Na semana passada, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) lançou a campanha “Justiça para os inocentes”, com o objetivo de defender que o reconhecimento fotográfico não possa ser utilizado como única prova para condenações e prisões.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Álvaro Quintão, afirma que a prática vem crescendo de forma exponencial, especialmente durante a pandemia do novo coronavírus.

“Se antes já tinham dificuldade ou até má vontade de fazer outro tipo de investigação, com a pandemia identificam por rede social, álbum, e encerram o inquérito. Não ouvem testemunha, não vão para a rua investigar, às vezes nem ouvem o acusado”, diz.

Relatório da Defensoria do Rio de setembro deste ano mostra que pelo menos 53 pessoas foram erroneamente identificadas por fotografia entre novembro de 2014 e agosto de 2019. A estimativa é que esse número seja muito maior, já que dos 198 defensores que atuam com atribuição criminal, apenas 19 encaminharam os casos para o levantamento.

A pesquisa também indica que o racismo pode transparecer nesse tipo de procedimento. Entre os acusados equivocadamente, apenas 10, ou 18%, são brancos.

Para Emanuel Queiroz, coordenador de defesa criminal da Defensoria, o levantamento mostra que no país existe a cultura de não se investigar corretamente, para entregar mais rapidamente os resultados.
“[Existe a cultura] de solucionar os crimes de qualquer forma por parte da polícia, que é pressionada a dar resultado e apontar resultados em inquéritos. Acrescido a isso, não há por parte do Ministério Público nenhum olhar crítico sobre o que recebe da força policial”, diz.

“A acusação engole aquilo, e por parte do Judiciário a regra é a prisão, não a liberdade. As pessoas apontadas como autoras amargam até nove meses de prisão antes de a denúncia ser arquivada. O verdadeiro autor do crime jamais vai ser descoberto.”

O relatório do órgão foi uma tentativa de aglutinar esse tipo de caso, em meio a um deserto de dados a respeito da condenação de inocentes no país.

Doutor em ciências criminais pela PUC-RS e autor do livro “Falsas Memórias e Sistema Penal: A prova testemunhal em xeque”, o pesquisador Gustavo Noronha de Ávila lembra que nos Estados Unidos 70% das condenações de inocentes partiram de identificação mal feita, pessoal ou fotográfica

No Brasil não existe um levantamento da mesma extensão, mas Ávila acredita que milhares de inocentes passem pela mesma situação no país.

Em 2015, o professor produziu um relatório a pedido do Ministério da Justiça, que tinha como objetivo identificar de que forma a prova penal dependente da memória era produzida no país. Foram entrevistadas 87 pessoas, entre elas policiais, defensores públicos, advogados, membros do Ministério Público e da magistratura.

Ávila afirma que pelo levantamento foi possível concluir que a prova produzida no Brasil é de má qualidade, em desacordo com as boas práticas previstas pela psicologia do testemunho. Segundo ele, o reconhecimento fotográfico é o procedimento mais sugestionável e frágil de todos.

“[Nas entrevistas ouvimos] coisas que nos deixaram muito preocupados. Uma pessoa disse que julgava com os olhos da alma, outra que sabia quando a testemunha mentia e quando falava a verdade. Uma pessoa acometida de falsa memória tem a mesma atitude de quem está falando a verdade. Precisamos de corroboração imparcial, de outra fonte de prova”, afirma.

Especialistas citam ainda a falta de investimento na obtenção provas técnicas. “Não tem estrutura para realizar laudos periciai”, diz. “Como tem um prazo para o inquérito ser encaminhado, na prática muitas vezes é encerrado sem que a prova técnica tenha vindo.”

As informações são da FolhaPress

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