Menu
Brasil

Invisibilidade e precariedade são marcas para desesperança de trabalhadores

No dia a dia, o que geralmente passa despercebido, porém, é o esforço de várias mãos desconhecidas para que a rotina seja possível

Redação Jornal de Brasília

14/06/2023 15h57

Giovanna dos Santos
Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB

A vida na cidade é marcada por uma rotina familiar e automática. O cidadão de classe média acorda cedo para passar um café e comer frutas frescas compradas na feira. Coloca uma roupa limpa e passada e pega um ônibus para chegar ao trabalho. Na correria do dia a dia, não teve tempo de preparar o almoço no dia anterior, então planeja pedir um delivery mais tarde.

Não passam despercebidos o trânsito, o clima, os ruídos dos carros na rua, ou a quantidade de tarefas que precisam ser realizadas até o fim do dia, que são repassadas na cabeça durante o trajeto ao escritório. O que geralmente passa despercebido, porém, é o esforço de várias mãos desconhecidas para que a rotina seja possível.

É a diarista que limpou a casa e passou as roupas. É o feirante que vendeu as frutas do café da manhã. É o motorista de ônibus que dirigiu até o ponto mais próximo do trabalho. É o gari que deixou a rua limpa por onde o ônibus passou. É também o motoboy que levou a comida até a porta do escritório.

São as pessoas sem as quais a cidade perde a vida e que, mesmo assim, andam anônimas no meio da multidão. São os representados nos versos de Heróis Invisíveis, canção do rapper e compositor paulista Fabio Brazza. Aqueles que lutam diariamente por uma forma de sustento em meio às precárias condições de trabalho e à falta de oportunidades.

“E ao ver toda essa luta eu pensei na hora
Um pensamento que me veio lá do fundo
Essa gente que a gente ignora
Tá salvando o mundo irmão, tá salvando o mundo
Que não te falte forças pra lutar e motivo pra sorrir
Fé pra acreditar e amor pra dividir”

Perante a realidade da desvalorização de tantos empregos no Brasil, as palavras de Brazza clamam por visibilidade a quem tem constantemente negadas as mínimas garantias de direitos trabalhistas e perspectiva de retorno financeiro adequado, e que convive com a instabilidade do mercado e insegurança quanto ao próprio futuro. A poesia reflete a tentativa de tornar visíveis os heróis invisíveis da sociedade.

Preconceito e desvalorização

“Semana passada mesmo me chamaram de lixeira, usando essa palavra de forma pejorativa. Às vezes alguém na rua desrespeita a gente. Fiquei chateada e passei o resto do dia pensando nisso”, conta Jéssica Souza sobre o preconceito que geralmente enfrenta enquanto gari.

A baiana de 31 anos se mudou para Brasília ainda criança, acompanhada dos pais que buscavam melhores oportunidades de emprego. Mesmo com o cansaço do trabalho braçal embaixo do sol, Jéssica adora estar ao ar livre e compartilhar sorrisos com as colegas.

“Graças a Deus a gente tem o que fazer, tem um trabalho, nosso dinheirinho no começo do mês para não deixar nada faltar pros nossos filhos. A gente vem trabalhar sorrindo, uma brincando com a outra, sempre alegres. Se a gente estiver triste é porque tá doente”, explica a gari.

Assim como ela, José Reginaldo Filho, 52 anos, veio buscar na capital a sua forma de sustento e, também como Jéssica, já teve que ouvir eventuais desaforos no serviço. “Tem um pessoal que chega e humilha a gente, que faz pouco caso e acha que a gente não vale nada. Mas que bom que são poucos, a maioria dos meus clientes me trata bem”, afirma o vendedor ambulante nascido no Piauí.

Todos os dias, ele se levanta às cinco horas da manhã em Ceilândia e sai para vender seus produtos de limpeza, como saco de lixo, vassoura, rodo e pano de chão. José está há 25 anos na profissão e diz não se ver fazendo outra coisa, seja pela satisfação que sente ao interagir com tantas pessoas todos os dias, seja pela falta de estudo que o impossibilitou de seguir um caminho diferente.

Já o motoboy André Oliveira acredita que suas possibilidades no mercado de trabalho estão só começando: o rapaz de 24 anos gosta muito da adrenalina de andar de moto e da liberdade que sente ao poder trabalhar na rua, se deslocando para todos os lugares, mas conclui que sua função é temporária e apareceu para salvá-lo do desemprego durante a pandemia de covid-19.

E mesmo ele não consegue fugir do descaso e maus tratos que, de vez em quando, se manifestam. “Tem uns restaurantes que nos tratam muito mal, proíbem de entrar, se você pedir água eles não dão… Acho que não custa nada a gente usar o banheiro ou trocar a água da garrafa, que esquenta ao longo do dia”, conta André.

Precariedade da educação

Todos eles possuem duas coisas em comum. Em primeiro lugar, entendem a importância e o valor do trabalho que fazem para a coletividade, por mais que uma parcela das pessoas que a compõe menospreze os seus serviços e falhe em enxergar o quanto são essenciais para a mesma.

Em segundo lugar, a impossibilidade de estudar é o principal empecilho para que alcancem melhores oportunidades. Jéssica e André concluíram o ensino médio, mas não conseguem conciliar o tempo entre o trabalho e uma faculdade, sem contar que o salário não é o suficiente para bancar a mensalidade e todas as despesas da casa ao mesmo tempo. Já José saiu da escola na oitava série do ensino fundamental.

A empregada doméstica Maria do Socorro Dias, 64 anos, relembra a época em que não conseguiu dar continuidade ao curso superior por proibição do marido. “Eu chegava em casa às 23h depois dos estudos, com três crianças para cuidar, e meu marido estava por aí na rua bebendo. Deixava elas sozinhas em casa”, lamenta Socorro.

“Então todo o dia ele brigava que não era para eu estar estudando, era pra eu estar em casa cuidando das crianças. Ele trabalhava durante o dia e à noite ia pro bar, não me ajudava por falta de vontade”, complementa.

Socorro sonhava em ser advogada. Hoje, sonha com a aposentadoria. André quer ser policial. Jéssica gostaria de cursar enfermagem para poder cuidar da mãe, que tem diabetes e alguns problemas do coração. Já José sonha apenas em ter saúde e continuar morando com a esposa em sua casa de aluguel.

Sendo assim, o sustento da família é a prioridade imediata de cada um desses trabalhadores e, se o futuro for bom o bastante com eles, quem sabe seus sonhos se realizem.

Para as mulheres é ainda mais difícil, quando se trata de balancear as responsabilidades de mãe, trabalhadora e dona de casa. “O serviço é cansativo, eu chego em casa e só quero tomar um banho, deitar e descansar, mas tem que cuidar de filho e fazer janta. A gente não pára, o homem se adoece, deita. Nós mulheres temos que estar ali, em pé, tentando fazer tudo”, diz Jéssica.

Subemprego e conjuntura econômica

As ocupações de Jéssica, André, José e Socorro caem na categoria do subemprego, condição em que o trabalho não necessita de qualificação profissional e oferece baixa remuneração. Em diversos casos, o subemprego é instável e não tem garantias trabalhistas, comumente relacionado com o desemprego pois, a fim de sair desta situação, o indivíduo sem formação profissional vê nesta alternativa a única possibilidade de sustento.

Segundo os últimos dados levantados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), pesquisa do IBGE realizada trimestralmente e que mostra quantos desempregados há no Brasil, a taxa de desemprego subiu para 8,8% no trimestre referente ao período de janeiro a março de 2023.

Isso significa que, atualmente, há cerca de 9,4 milhões de pessoas sem emprego no país. A taxa sofreu um aumento de 0,9 ponto percentual em comparação ao trimestre anterior, entre outubro e dezembro de 2022, fechada em 7,9%. Somente no Distrito Federal, 271 mil pessoas estão nessa situação, segundo dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego do DIEESE – CUT-DF.

Dentre os 97,8 milhões de brasileiros empregados, 39,3 milhões estão inseridos no mercado informal, ainda segundo a PNAD Contínua. Entram nessa questão justamente os subempregos. Em países pobres ou emergentes como o Brasil, onde muitos não têm a oportunidade de estudar, em adição à crescente urbanização e à ineficiência dos governos em atender às demandas populacionais quanto a vagas de trabalho, esses tipos de emprego têm visto cada vez mais procura.

“Reforma trabalhista estimulou precariedade”

O professor de economia e finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB), Roberto Piscitelli, explica como o atual cenário econômico brasileiro leva a esse resultado. Segundo Piscitelli, a economia “patinou” nos últimos anos, fator que compromete o mercado de trabalho, e como a população em idade para trabalhar aumentou, a economia não tem condições de oferecer uma quantidade e qualidade de emprego que seja compatível com o aumento das necessidades da população.

“Além disso, a reforma trabalhista flexibilizou bastante as condições do mercado de trabalho e isso fez com que as empresas relaxassem nos controles e no cumprimento das suas obrigações e estimulassem formas precárias de relação trabalhista, como o trabalho em tempo parcial e o emprego intermitente por exemplo”, explica o professor.

Essa realidade contribui para a queda da qualidade do trabalho, ou seja, uma piora nas remunerações e condições empregatícias no geral.

O economista destaca também os impactos negativos do subemprego para a qualidade de vida do indivíduo e da família. A precariedade desse tipo de serviço pode relacionar-se com a insegurança de continuidade e persistência no mesmo, já que não há garantia de estabilidade no emprego ou de manutenção de um padrão de renda.

“Isso leva a um cenário de menor perspectiva de futuro e prejudica a qualidade de vida na medida em que o indivíduo, dificilmente, pode assumir compromissos a médio e longo prazo com base no trabalho que exerce naquele momento”, conclui.

Ainda segundo Piscielli, cabe ao Estado fazer a retomada do crescimento econômico de forma continuada e consistente a partir de um planejamento adequado, que dê perspectiva a médio e longo prazo ao cidadão e estabeleça diretrizes garantidas para o futuro, bem como fazer investimentos de infraestrutura sobretudo em áreas que tendem a absorver muita mão de obra.

“Invisíveis”

“Nos 43 anos que moro em Brasília, eu nunca me acostumei com essa cidade. Minha vida é isso: de casa pro serviço, do serviço pra casa, e os fins de semana na casa dos filhos. Eu vim para a capital em busca de uma ilusão, a ilusão de melhorar minha qualidade de vida… mas às vezes até parece que a minha existência nem importa muito.”

As sofridas palavras de Maria do Socorro doem em todos aqueles que, assim como ela, são acometidos pelo fenômeno da invisibilidade. A invisibilidade pública e social é um conceito aplicado nas Ciências Sociais caracterizado pelo desaparecimento de um sujeito em meio à multidão, seja por indiferença ou por preconceito estrutural.

Essa realidade atinge a vida de tantos trabalhadores que, muitas vezes estando à margem da sociedade por fatores históricos, culturais, sociais, religiosos e econômicos, lutam contra o mal da desvalorização de seus esforços diários e formas dignas de sustento. Pouco conhecido, o fenômeno perpetua a legitimação e naturalização das desigualdades.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado