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Brasil

Hospitais e Santas Casas falam em fechar 20 mil leitos

A escalada do preço de remédios e a defasagem de valores pagos pelo poder público por exames e procedimentos são outros gargalos

Redação Jornal de Brasília

27/08/2022 8h36

O novo piso da enfermagem, sancionado este mês, pode levar ao fechamento de mais de 20 mil leitos hospitalares e à dispensa de 83 mil funcionários, segundo pesquisa feita pelas cinco maiores entidades do setor hospitalar do País nesta semana. A escalada do preço de remédios e a defasagem de valores pagos pelo poder público por exames e procedimentos são outros gargalos.

A Lei 14.434/22, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), no dia 4 de agosto, estabelece o piso salarial para enfermeiros, contratados em regime CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), em R$ 4.750, para técnicos de enfermagem em R$ 3.325 e para auxiliares de enfermagem e parteiras em R$ 2.375.

Responsáveis por mais de 50% dos atendimentos ambulatoriais e internações hospitalares realizados no Sistema Único de Saúde (SUS), hospitais filantrópicos e Santas Casas estão entre os mais afetados. O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) argumenta que a dificuldade dessas instituições é histórica e não se relaciona apenas com o aumento do piso salarial da categoria.

A Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB), Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), Federação Brasileira de Hospitais (FBH), Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) e Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) ouviram para o levantamento 2.511 instituições de saúde de todas as regiões. Dentre os participantes, 42,9% são hospitais e, desses, 35% não têm fins lucrativos. Apenas 12% das instituições consultadas são de grande porte.

Segundo a pesquisa, a folha de pagamento, que já representava a maior despesa dos hospitais, será onerada, em média, em 60% – sendo que em hospitais de pequeno porte este ônus será de 64%. Diante desse cenário, foi questionado aos estabelecimentos quais medidas deverão ser tomadas: 51% terão de reduzir o número de leitos, 77% terão de reduzir o corpo de enfermagem, 65% vão reduzir o quadro de colaboradores em outras áreas e 59% cancelarão investimentos. A pesquisa aponta que serão fechados cerca de 27 leitos por instituição, em média.

“Nossa situação já era dramática e agora ficou insustentável. Sem uma fonte de financiamento, fica muito difícil manter os serviços das Obras Sociais Irmã Dulce”, disse Maria Rita Pontes, superintendente das Osid e sobrinha de Santa Dulce dos Pobres. “O piso é extremamente justo para a categoria, temos contingente de 1.300 pessoas, mas, infelizmente, já nos reunimos com parte delas e explicamos que não podemos assumir essa despesa.”

A lei do piso nacional da enfermagem agrava principalmente a situação dos 1.824 hospitais filantrópicos e Santas Casas espalhados pelo Brasil. O novo piso aumentará em mais de R$ 6,3 bilhões por ano os custos dessas instituições que já enfrentam grande dificuldade para manter os atendimentos à população pela defasagem de 15 anos na tabela SUS, segundo a CMB.

Daniel Menezes, porta-voz do Cofen, disse que o segmento das instituições privadas de saúde teve lucro superior a 20% nos últimos e vai ser menos afetado pelo piso. “Em relação às Santas Casas e ao setor filantrópico, a gente compreende e é solidário, mas é um problema histórico.” Para ele, o foco das entidades hospitalares deveria ser o da cobrança do Legislativo e do governo para ajustar o financiamento.

Para o médico Walter Cintra Ferreira, professor da FGVSaúde e especialista em administração hospitalar, o subfinanciamento da saúde precisa ser revisto. “A pandemia (de covid-19) serviu para mostrar a importância do SUS e também a sua debilidade por não ter financiamento adequado. Esse problema (do subfinanciamento) acaba afetando a gestão. Não tem como manter pessoas capacitadas para fazer a gestão se não há como remunerar adequadamente. Aí entramos em um espiral de coisas ruins, de pessoas com dois ou três empregos para sobreviver.”

Ele disse que o novo piso salarial da enfermagem não é nada extravagante se levar em conta a importância desse profissional no sistema de saúde. “Os hospitais têm de se adaptar à nova realidade”, disse. “Não dá para colocar na conta do pessoal da enfermagem.”

O especialista atribuiu a alta nos insumos hospitalares a um contexto mundial que não afeta só o Brasil. “O problema é que abrimos mão de ter uma cadeia de produção de insumos aqui. Um país de 220 milhões de habitantes não pode se dar ao luxo de não ter uma cadeia de produção de vacinas, por exemplo. Precisamos de políticas públicas que garantam pelo menos os elos mais estratégicos das cadeias de produção. Mas essa é uma questão de macroeconomia, que não tem a ver com o salário do enfermeiro”, afirmou.

A CMB e outras entidades nacionais do setor de saúde, entre elas a CNSaúde, a Abramed, a FBH, a Anahp, a Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas (ABCVac) e a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) além de federações de hospitais, propuseram perante o Supremo Tribunal Federal (STF) ação direta pleiteando a declaração de inconstitucionalidade da lei do piso .O Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo entrou como parte interessada. Conforme o presidente, Francisco Balestrin, a adoção do piso vai inviabilizar grande parte do atendimento médico-hospitalar e nos planos de saúde.

Filantrópicos já reduzem atendimento

Hospitais filantrópicos essenciais correm o risco de parar ou reduzir o atendimento. Com 72 serviços de saúde e assistência, presentes em diversas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Goiás, Ceará, Pará e Amazonas, a Rede Associação Lar São Francisco de Assis na Providência de Deus tem hoje 8.543 profissionais e o impacto mensal com o novo piso da enfermagem será de R$ 6,8 milhões. Fazem parte da rede hospitalar referências regionais, como o Regional de Presidente Prudente, Regional de Ilha Solteira e o Hospital João Paulo II, em Rio Preto.

Conforme o presidente do CMB, Miroceles Veras, o subfinanciamento é um problema histórico. “A tabela do SUS tem valores totalmente defasados. Estamos há dois anos querendo discutir uma nova forma de financiamento, que é pagar de uma forma justa os procedimentos pelos seus custos. Hoje, a defasagem é de 60% sobre o valor que nós pagamos”, disse, lembrando que nos últimos seis anos, 315 instituições encerraram os serviços por falta de condições financeiras de continuar operando.

Em Minas Gerais, a Santa Casa de Belo Horizonte entrou com ação na Justiça e, no último dia 12, conseguiu o bloqueio de pouco mais de R$ 3 milhões do Fundo Estadual de Saúde, verbas dos governos estadual e federal. A decisão, do juiz federal Pedro Pereira Pimenta, levou em conta o risco de prejuízo à prestação de serviço de saúde essencial à população.

Sem recursos para pagar um salário melhor para o pessoal da enfermagem, a Santa Casa de Poços de Caldas (MG), fundada há 118 anos, viu seus melhores enfermeiros migrarem para hospitais particulares da cidade. No início deste mês, por falta desses profissionais e de outros da enfermagem, o hospital anunciou o fechamento da ala de convênios, que ocupava ao menos 12 apartamentos. “Sacrificamos um setor importante para manter o atendimento do SUS, que é nossa principal missão”, disse ao Estado o superintendente Ricardo Sá.

Para o presidente da Confederação Nacional de Saúde, Breno Monteiro, a rede de hospitais filantrópicos é fundamental para o SUS. “Ela realiza mais 70% dos procedimentos de alta complexidade”, ressalta.

Ministério da Saúde destaca repasses de R$ 63,1 bi em 2021

O Ministério da Saúde informou que a Tabela SUS estabelece valores referenciais de remuneração para ações de saúde de média e alta complexidade, pagos na apresentação da produção, com o ressarcimento aos serviços hospitalares. “No entanto, a Tabela SUS não constitui a principal nem a única forma de financiamento do SUS”, disse, em nota.

O Ministério da Saúde afirmou que repassa mensalmente recursos financeiros a todos os estados e municípios para custeio de procedimentos e serviços hospitalares, incluindo os realizados pelas Santas Casas e hospitais filantrópicos. Em 2021, foram repassados mais de R$ 63,1 bilhões aos fundos estaduais e municipais de saúde. Em 2022, até o mês de agosto, foram repassados mais de R$ 36,3 bilhões.

A pasta reforçou ainda que a gestão e o financiamento SUS é compartilhado entre União, Estados e municípios. “Cabe aos gestores locais o planejamento e a organização de sua rede assistencial, assim como a execução das ações e serviços de saúde”, disse. O Ministério não respondeu sobre o impacto do novo piso da enfermagem nas contas das instituições de saúde.

Estadão Conteúdo

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