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Brasil

Exclusivo: Grupos de incesto e conteúdo infantil se espalham pelas redes sociais

Entre as publicações, há supostas mães, pais, tios e avós que contam desde desejos a abusos de fato cometidos contra parentes

Geovanna Bispo

06/03/2023 5h27

*Este material pode conter gatilhos

Ao contrário do senso comum, de que grupos criminosos podem ser encontrados apenas no submundo da internet, as redes sociais comuns têm mostrado que podem ser espaços para pessoas mal intencionadas se encontrarem e trocarem experiências. Nas últimas semanas, viralizaram nas redes sociais prints de um grupo no Facebook com relatos de um homem que dizia ter “vontade de acariciar” a filha de 10 anos. A comunidade, voltada para publicações sobre casos de incesto, tinha cerca de 13 mil participantes.

Entre as publicações, escritas em português e espanhol, há supostas mães, pais, tios e avós que contam desde desejos a abusos de fato cometidos contra parentes, geralmente menores de idade. Nos comentários do primeiro, um segundo homem orienta como o “pai” deve fazer e chega a citar o que ele chama de “sexo familiar”.

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 73% dos casos de abusos sexuais contra crianças e adolescentes aconteceram na própria casa da vítima e 40% foram cometidas pelo pai ou padrasto.

Outro caso encontrado na comunidade foi de um suposto pai, que questiona se alguém no grupo teria uma “filhinha” para lhe emprestar, já que a dele cresceu. O homem ainda limita a idade da vítima para 13 anos.

Foto: Reprodução/redes sociais

Nesse contexto, declarar seus “desejos”, em princípio, não teria uma repercussão criminal, apenas civil. Mas, segundo o coordenador do Núcleo de Combate a Crimes Cibernéticos (Ncyber), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Leonardo Otreira, no caso daqueles que comentam e dão orientações, é considerado crime quando fica comprovado que as falas foram norteadoras para um possível abuso. “Se essa pessoa receber essa mensagem, praticar o crime e ficar comprovado que ele acatou essa ‘sugestão’, nós entendemos que houve uma participação”, avalia o promotor.

Um terceiro caso foi de outro suposto pai, que diz ter passado toda a manhã tentando decidir se postava uma foto da filha no grupo. “Eu sei que posso me aposentar a qualquer momento deste grupo, mas a maioria dos comentários são para que eu poste as fotos dela […] No momento não vou postar fotos dela, só a reportagem”, diz a publicação.

Foto: Reprodução/redes sociais

Penalização

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a penalização por abuso sexual leva em conta as características do crime: sem e com contato físico. No primeiro caso, a legislação caracteriza que “colocar a vítima em contato com materiais pornográficos (revista, filmes ou sites)” pode levar de um a três anos de reclusão e multa, e “deixar a vítima presenciar relações sexuais e/ou atos libidinosos” pode render de dois a quatro anos de prisão. No segundo caso, quando há o contato, a pena é de oito a quinze anos de reclusão.

Ainda segundo o ECA, “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” é crime, passível de até um ano de prisão e multa.

Em relação ao incesto, ou seja, a relação sexual entre familiares, não é crime no país a não ser que envolva crianças e adolescentes, ou haja ameaça ou violência.

A criança

As consequências de um abuso sexual para uma criança são incontáveis, segundo especialistas. De acordo com a psicóloga infantil Andrea de França, em casos como os citados, uma delas é o comprometimento no desenvolvimento emocional. 

“Quando os abusadores são próximos à criança, ela acaba perdendo a confiança nas pessoas. Quando pessoas muito próximas, como um pai, um padrasto, um tio, cometem esses abusos, a criança acaba perdendo a referência de um adulto de confiança”, explica.

Outra parte afetada é o psicológico da vítima, que fica abalado, alterando a percepção de imagem, autoestima, confiança e a separação do que é certo e errado, e pode até levá-la a se culpar pelo abuso. 

“Ela sente um misto de sentimentos, mas que ela não sabe decifrar, não sabe avaliar, porque ela é imatura para entender o que aconteceu. Em muitos casos, o abusador ainda pressiona a criança para não contar o que aconteceu, o que gera ainda mais traumas na criança ainda, porque ela se sente culpada por algo que não é responsável”, continua a especialista.

Ainda de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, nos cinco primeiros meses de 2022, dos 7.447 casos de abusos sexuais registrados pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), 5.881 foram cometidos contra crianças ou adolescentes, o que representa quase 79% das denúncias.

Como alerta aos pais e responsáveis, a psicóloga descreve as características que a criança ou adolescente pode passar a ter após um abuso. “Crianças abusadas sexualmente tendem a ter um comportamento mais agressivo, mais inibido. Então, os primeiros sinais são a criança mudar drasticamente o comportamento. E, geralmente, ela fica acuada na presença do abusador ou de pessoas do mesmo gênero. Além de brincadeiras de cunho sexual, por exemplo, pegar dois bonecos e colocar um em cima do outro. A criança, muitas vezes, reproduz pela brincadeira esses acontecimentos”, afirma França.

Pedofilia

Ainda que seja comum classificar um abusador de crianças e adolescentes como pedófilo, o mestre em psicologia clínica Olivio Israel Costa explica que a “pedofilia” trata-se, na verdade, de um transtorno sexual, passível de tratamento. “Segundo o DSM-5, a pedofilia, ou transtorno pedofílico, se define como um transtorno sexual caracterizado por fantasias, comportamentos recorrentes, intensos e sexualmente excitantes em relação a crianças e adolescentes em fase pré-pubere (até 14 anos de idade)”, explica.

O DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) é um manual que busca padronizar os critérios diagnósticos das desordens mentais e emocionais.

Mesmo com algum conhecimento, as causas da pedofilia são desconhecidas, sendo entendida, ainda de acordo com o especialista, como uma condição de etiologia multifatorial, que envolve questões biológicas, psicológicas e sociais.”Abusos sexuais são cometidos quase que exclusivamente por homens, e pedofilia é um transtorno que acomete majoritariamente homens”, justifica Costa.

Ainda que complexo, a promotora do MPDFT Mariana Távora esclarece que, na maioria dos casos, pessoas que abusam de crianças e adolescente não possuem o transtorno pedofílico, sendo, na verdade, mais um mecanismo da cultura do estupro. 

“Muitas vezes há um viés de gênero, porque nós temos uma cultura de sexualização de meninas, com casos de casamento infantil, com práticas de sexualização e voltadas para a objetificação de corpos infantis. Então, nós temos uma lógica e uma cultura misóginas que favorece a sexualização precoce dessas garotas”, explica.

Ainda assim, o psicólogo ressalta que o diagnóstico de transtorno pedofílico não deve ser um abrangente para a culpa do abusador. “É fundamental não patologizar a violência sexual contra menores e atribuí-la a um diagnóstico, pois essa é imensa minoria dos casos. Utilizar uma parafilia para justificar uma violência sistêmica pode ser um artifício usado por abusadores para atenuar sua culpa e mascarar a real face da violência sexual, maximizando o sofrimento das vítimas em todo o processo”, completa o especialista.

Facebook

Além do grupo que viralizou, a reportagem identificou, ao menos, 12 outros no Facebook e Telegram, aplicativo de mensagens instantâneas conhecido pela liberdade de uso dada aos usuários. No total, quase 20 mil pessoas participavam desses grupos e comunidades.

Na percepção de Otreira, as redes sociais se tornaram apenas mais um “mecanismo” para a pessoa que já cometeria o crime. “Na verdade, o que a internet faz é dar mais um meio, mais uma ferramenta para o criminoso, que já cometeria o crime, cometer ele de outra forma. A internet não tem culpa do aumento de crimes, mas o mal uso dela pelos usuários que acaba gerando esse aumento”, explica.

À reportagem, a Meta, empresa responsável pelo Facebook, afirma que não é permitido qualquer “conteúdo de exploração sexual, abuso ou nudez infantil” nas redes sociais e garante que os grupos apontados foram removidos. “Não permitimos conteúdos de exploração sexual, abuso ou nudez infantil ou propostas de cunho sexual em nossas plataformas e removemos os grupos apontados pela reportagem que violavam essas políticas. Usamos tecnologias de inteligência artificial e moderadores humanos para revisar e remover conteúdos desta natureza”, diz em nota.

Após a denúncia, a empresa excluiu os grupos encontrados pelo JBr.

Telegram

Entre os grupos e comunidades, há os “bots”, um programa de repetição com respostas prontas, que nesse caso, são links para vídeos de pornografia infantil ou incesto. Sendo assim, o crime se torna outro. “O robô é criado por um ser humano. A codificação desse robô que leva a responder com um vídeo de pornografia infantil é parte de uma configuração prévia que parte de um usuário criminoso da mesma forma”, esclarece o promotor Leonardo Otreira.

A reportagem tentou contato com o Telegram, mas, até o momento da publicação deste material, não obteve resposta.

Polícia Civil de Santa Catarina (PCSC)

Durante a apuração, a reportagem descobriu que o primeiro homem citado na matéria é residente de Criciúma (SC). A Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI), da Polícia Civil de Santa Catarina (PCSC), foi procurada para comentar o caso, mas afirmou não poder falar sobre investigações envolvendo crianças.

“De ordem da Autoridade Policial informamos que, todos os procedimentos envolvendo crianças/adolescentes são estritamente sigilosos, ao passo que não são divulgadas nenhuma informação, inclusive sobre a existência de procedimento policial nesta unidade, para proteção e segurança da criança/adolescente na cidade”, informou em nota.

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