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Brasil

Como o parangolé de Oiticica resume o Carnaval e o samba como asa-delta para o êxtase

O parangolé indissocia a visão, concentrando em si todos os elementos que se apresentam ao olhar

FolhaPress

21/02/2023 10h52

GUSTAVO ZEITEL
RECIFE, PE (FOLHAPRESS)

Tudo é o parangolé. Atar as duas pontas do mesmo tecido, até que pano e paisagem sejam uma superfície só: a paisagem, ela mesma. Unir o mar ao morro, o Rio de Janeiro todo, o verão num único monocromo.

O parangolé indissocia a visão, concentrando em si todos os elementos que se apresentam ao olhar. É uma certeza, euforia carnavalesca, e um objeto sem nome, se Hélio Oiticica não o tivesse chamado de “parangolé”.

Por não ser estático, é também incerto, malemolente. Um objeto que no ar insinua curvas, vértices, vórtices. Suas cores se avivam no espaço aberto, pela indeterminação da dança, o samba. O Carnaval é o parangolé, e o parangolé é o Carnaval.

Em 1964, Oiticica subiu o morro da Mangueira pela primeira vez, enfastiado com a vida burguesa que levava. Na companhia do escultor Jackson Ribeiro, o artista plástico encontrou na quadra da escola de samba uma vitalidade transgressora antes desconhecida.

Ele se deslumbrou com os carros alegóricos e com a costura de adereços e fantasias. Passou, então, a frequentar o morro, aprendendo a sambar com Mestre Miro. Tempos depois, já desfilava pela verde e rosa como passista.

Numa estilização da experiência momesca, Oiticica condensou a visualidade dos desfiles, transformando um pano numa capa para ser vestida. O efeito visual almejado se daria com a capa em movimento, o corpo dançando e espalhando a cor no ar. O parangolé não seria, portanto, um quadro, uma escultura ou uma instalação.

O livro “Qual É o Parangolé?”, editado em 2015 pela Companhia das Letras, reúne ensaios de Waly Salomão, poeta e amigo de Oiticica, sobre a vestimenta e sua estética. Segundo Waly, a pergunta do título da obra era repetida à exaustão nas ruas do Rio nos anos 1960. Tão indeterminada quanto o próprio objeto, a expressão pode agregar diferentes significados. “O que é que há?”, “qual é a parada?”, “como vão as coisas?”.

Waly pensa o parangolé bem ao seu modo exclamativo e verborrágico, com parágrafos caudalosos que atropelam uma frase à outra. Logo na introdução do livro, ele avisa que se valeria de “um estilo enviesado, uma conversa entrecortada igual ao labirinto das quebradas dos morros cariocas, zigue-zague entre a escuridão e a claridade.”

Sob o aspecto estilístico, sua prosa poética tenta mimetizar o objeto de estudo, o parangolé. Afinal, o tecido no ar, como observa Waly, tem duas dimensões arquitetônicas. A primeira se refere ao brutalismo, à simplicidade de um só pano em movimento. A segunda, e mais importante, é a insinuação da estrutura da moradia das favelas.

O parangolé emula a organicidade dos barracos, que se erguem a partir das noções de improviso e contingência. De modo análogo, a dança, que opera o efeito geométrico e cromático, também se assenta no improviso, traço coreográfico a um só tempo brasileiro e contemporâneo.

Por isso, o parangolé funciona como um produtor de afetos no tecido social. No samba, o improviso é um contrato de confiança entre o brincante e o espectador. Acertado o pacto, se produz um passo original, um efeito inventivo que ocupa o espaço, afirmando a criatividade de quem dança. O passo improvisado, porém, pode ou não reincidir no tempo. O parangolé tensiona, desse modo, os limites entre as artes plásticas e cênicas.

Nesse sentido, a criação de Oiticica tem filiação inequívoca com a teoria do não-objeto, conceito formulado por Ferreira Gullar, em 1959, que estruturou o movimento neoconcreto. Ainda que seja possível admirar os passos do brincante, não existe, no parangolé, a relação entre objeto e espectador.
Ao contrário da pintura ou da escultura, a obra se alicerça sem um suporte, o que Waly chama de “estrutura-ação”. A obra de arte só existe na vivência –a cor no ar. O espectador, emancipado, se torna o participante, que cria e vive o parangolé, sem hierarquia entre corpo e tecido.

É provável que Waly e Oiticica tenham se conhecido em 1967, durante a exposição “Nova Objetividade Brasileira”. Um ano depois, os dois estiveram juntos na manifestação “Apolicapopótese”, em que sambistas e passistas da Mangueira desfilaram no Aterro do Flamengo.

Os laços entre os dois viriam a se estreitar durante os anos 1970, quando o artista plástico estimulou a publicação dos primeiros escritos do poeta. A amizade entre a dupla teria como pano de fundo a tropicália, movimento de que Oiticica foi participante, e Waly, espectador-participante.

Para Waly, o parangolé era uma antevisão da paisagem. Se, como observado, o parangolé concentra os elementos dispostos ao olhar, o tecido é a um só tempo a interposição na realidade imediata e a síntese na realidade, ela mesma. É como se a cor no ar, interposta à paisagem, nela se diluísse. Por consequência, o corpo, sempre em movimento, se volta para o outro, num deslocamento de seu eixo. “Je est un autre” –“eu é um outro”, diria o poeta francês Arthur Rimbaud.

Ao corpo, “a estrutura-ação” é, nas palavras de Waly, uma experiência “suprasensorial”. Fora dos limites da moldura, os elementos do visível (cores, luzes, sombras e reflexos) se relacionam com o “feixe total dos sentidos”. Do mesmo modo, observadas do alto, as alas de uma escola de samba se dispõem como blocos cromáticos independentes e comunicantes. Mas, além da experiência sinestésica, o parangolé é uma intervenção política.

Oiticica era capaz de unir o samba da Mangueira ao rock de Jimi Hendrix, dois mundos unidos pela irreverência. “Call Me Helium” –“me Chame de Hélio”, em português–, pedia o lendário guitarrista, mencionando o gás nobre, levíssimo, homônimo ao artista. Insuflado, também flutua no ar o parangolé, despertando seu caráter hedonista. O parangolé é um convite ao gozo e à mundanidade, prevendo, em sua experiência –palavra tão cara a Hendrix– o desregramento dos sentidos.

Subversivo, era nos anos 1960 uma ameaça à ordem imposta pelo regime militar. Em 1965, Oiticica convidou passistas e ritmistas da Mangueira para exibirem sua nova invenção na mostra “Opinião 65”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

O artista desejava que a escola entrasse no museu sambando, tocando e espalhando a cor no ar, mas a direção do MAM impediu o desfile da escola, numa atitude preconceituosa, própria do circuito das artes plásticas.

Apesar da indignação, o artista conseguiu ali a prova do incômodo que causava ao valorizar em seu trabalho uma expressão popular, o Carnaval. Também antevia o descompasso entre as inquietações da arte institucional e a cultura que brotava das ruas. “Museu é o mundo, é a experiência cotidiana”, ele dizia.

Em alguns modelos de parangolé, Oiticica bordou dizeres políticos. “Da adversidade vivemos”, “estou Possuído” ou “incorporo a revolta”. Nos dois últimos casos, o artista fazia menção à espiritualidade das religiões de matriz africana, discriminadas pela história e homenageadas em 2023 pelo enredo da Mangueira, “As Áfricas que a Bahia Canta”.

Oiticica ressaltava, todavia, que a experiência “suprasensorial” do parangolé era um apelo à imanência e não se relacionava com a religiosidade. Desse modo, o parangolé é também político por ser um chamado ao aqui e agora. “O parangolé pamplona você mesmo faz/ O parangolé pamplona a gente mesmo faz”, diz a canção “Parangolé Pamplona”, de Adriana Calcanhotto, incluída em “Maritmo”, de 1998.

Lá está a cantora, na capa do disco, rodopiando em seu parangolé. Na época da turnê, a performance tomaria conta dos palcos nos últimos minutos da canção. Contra o branco e o silêncio da página, o poema “Parangolé Pamplona” dispõe blocos cromáticos (“Verde/ Rosa/ Branco no branco no preto nu”).
Ligado o som, ouve-se a batida do maracatu e as bases eletrônicas que reforçam a sensação do transe, o mesmo desregramento dos sentidos provocado pela cor no ar. Acima de tudo, o parangolé, definido por Haroldo de Campos como “asa-delta para o êxtase” potencializa a experiência, para que o corpo em movimento se embriague com as sensações no “pleno ar/ puro hélio”, como diz a canção.

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