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Brasil

Arapongagem: lisura para uso de software pelo Ibama é incerta

Contratação de programa de investigação pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente pode esbarrar em brecha da LGPD

Vítor Mendonça

24/04/2024 10h41

“Uma busca indiscriminada de informações tem que atender a um legítimo interesse do órgão”, destacou a especialista na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Patrícia Sá. Frente à contratação do software investigativo Orbis Web Intelligence Center pelo Ibama, de ampla capacidade de busca de dados e desenvolvido pela empresa israelense Cognyte – conforme reportagem publicada pelo Jornal de Brasília ontem –, a lisura da utilização da ferramenta é incerta, uma vez que os limites quanto ao uso do programa não foram bem esclarecidos pelo órgão.

Cognyte, antiga Verint – e antiga Suntech no Brasil –, é proprietária do sistema de espionagem de celulares FirstMile, utilizado durante a Abin Paralela para espionar autoridades públicas no país – em especial as opositoras do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ela é a provável vencedora de licitação aberta pelo Ibama por pregão eletrônico de menor valor para investigação de crimes ambientais. Não houve recursos contra a companhia, o que garante a vitória da Cognyte.

Apesar da possibilidade de auditoria das pesquisas realizadas dentro do software e das justificativas apresentadas, não há garantias de que o programa não será utilizado para fins arbitrários. Vale ressaltar que a LGPD (nº 13.709/18) foi oficializada para “proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural” e que quaisquer buscas infundadas podem configurar crime.

Questionado sobre os critérios de segurança, fiscalização, produção de relatórios e monitoramento dos analistas para evitar o uso abusivo da ferramenta para interesses políticos, pessoais ou de terceiros, o Ibama informou apenas que a ferramenta deverá possibilitar a auditagem dos dados coletados, a fim de ter um melhor controle do uso do programa.

Porém, não foi especificado como o órgão faria a auditoria dos dados nem como garantiria a lisura prévia das investigações. Também não foram informados padrões e critérios utilizados internacionalmente ou por outros órgãos que delimitariam o uso do software.

Brecha na Lei

Nesse sentido, o uso arbitrário do software pode esbarrar em uma das lacunas da LGPD: a falta de legislação para o tratamento de dados pessoais diante de movimentações policiais de “segurança pública; defesa nacional; segurança do Estado; ou atividades de investigação e repressão de infrações penais”, conforme indica o inciso III.

O parágrafo 1º determina que o tratamento de dados pessoais dentro das atividades listadas “será regido por legislação específica”, que ainda não foi criada. A nova lei em questão “deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos nesta Lei [LGPD]”.

De acordo com Patrícia, os limites da Lei devem estar muito bem amparados na necessidade do acesso aos dados pelo órgão com poder de polícia – o Ibama tem poder de polícia ambiental no âmbito federal.

“Um dos grandes princípios da LGPD é a finalidade e a necessidade [sobre como os dados dos cidadãos serão utilizados]. […] Que os órgãos policiais têm necessidade de dados sensíveis, isso não há questionamentos, mas essa necessidade tem que vir precedida da finalidade”, continuou a especialista.

A contratação do software para investigação pode incidir também na captação de dados detalhados de terceiros alheios à investigação, indo na contramão do direito ao sigilo de informações pessoais.

“Os órgãos investigativos normalmente têm mecanismos próprios de investigar. Legitimar essa ação através de contratação de software eu considero muito temerário. As informações podem ser captadas não apenas das pessoas que estão sendo investigadas, por exemplo. Captam informações de terceiros também – isso já foi comprovado e pode ser um problema”, alertou Patrícia.

Discussão no STF

A lacuna na Lei resultou em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 84, em dezembro do ano passado, que foi proposta ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Procuradoria-Geral da República (PGR). A ação defende o reconhecimento da omissão do Congresso Nacional por não regulamentar o uso de ferramentas de monitoramento secreto (softwares espiões) de aparelhos de comunicação pessoal, como celulares e tablets, por órgãos e agentes públicos.

Ao tratar a respeito dos softwares de espionagem como o FirstMile, a ADO 84 expressa que o ponto central da controvérsia judicial é quanto ao “uso secreto e abusivo desses softwares e ferramentas, sem autorização judicial, tampouco limites ou salvaguardas, de forma contrária à tutela do interesse público e aos deveres de proteção dos direitos fundamentais, que se impõem em um Estado de direito”, explica o texto.

Entretanto, além do aspecto secreto do uso das ferramentas e da necessidade de autorização judicial para tal, a ADO 84 estabelece que sejam fixadas balizas para a utilização das tecnologias de inteligência de monitoramento, com termo de responsabilidade e uso restrito à indicação de número de inquérito policial ou procedimento investigativo.

Enquanto ainda não surgem tais legislações para balizar o uso das tecnologias de inteligência de monitoramento, mantém-se a lacuna entre o uso indiscriminado dos softwares e os limites da LGPD.

Como funciona o software

A busca de dados do Orbis é feita a partir de dados abertos, com alcance investigativo extenso, capaz de estabelecer conexões entre pessoas com diversas variáveis, baseando-se apenas em publicações abertas.

O programa traça perfis e faz um dossiê completo de indivíduos se baseando no histórico encontrado em fontes abertas, mídias sociais e na internet oculta (Deep e Dark Web). Com o auxílio de Inteligência Artificial e a automação da investigação, o Orbis Web Intelligence Center monta um relatório completo com informações detalhadas do alvo investigado – com quem interage, com quem já se encontrou, entre outros aspectos.

De acordo com a justificativa do Ibama para a licitação, expressa por meio de Estudo Técnico Preliminar (ETP), o uso do software possibilita “extrair de fontes abertas informações metadados e informações geográficas que poderão ser usadas para a construção de conhecimento detalhado das redes de ilícitos, que poderão servir como pontos de partida para outras análises e investigações” feitas pelo órgão, conforme explica o edital.

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