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Brasil

A busca criminosa pela cura do autismo: “Você é o único responsável pelo uso desse livro”

Conheça o livro que popularizou uma suposta ‘cura’ para um transtorno incurável

Redação Jornal de Brasília

25/11/2021 16h18

Atualizada 07/04/2022 14h30

Foto: Canva

Por Evellyn Luchetta e Geovanna Bispo
[email protected]

Esta é a segunda publicação de uma série de reportagens que expõe uma uma história de negacionismo e sério risco à saúde. Em anúncios, grupos na internet e livros, uma mistura química é defendida livremente como uso medicinal contra o autismo: o MMS. Semelhante a um alvejante, a aplicação do produto de forma medicinal pode causar sérios riscos à vida dos pacientes e até provocar a morte.

A sigla é uma abreviação para “Mineral Miracle Solution” ou “Solução Mineral Milagrosa” em português, que  consiste na mistura do clorito de sódio com o ácido clorídrico. 

Para que a ‘cura’ do autismo seja alcançada, pais e incentivadores do MMS compartilham formas de fazer a aplicação da substância nas comunidades do Telegram. A aplicação, compartilhada em formato de texto com instruções detalhadas, tem muitas vezes a escrita em moldes formais, com riqueza de detalhes e passos, na tentativa de trazer um ar de ‘seriedade’ para quem lê.

Esse protocolo é inspirado no livro de Kerri Rivera, “Curando sintomas conhecidos como autismo”, que foi um dos principais disseminadores dos princípios do MMS. O livro é utilizado quase como uma Bíblia e a escritora, tratada como um Deus. Apesar do tratamento dado à Rivera, a mesma se isenta de qualquer responsabilidade já no prefácio.

A frase “Você é o único responsável pelo uso desse livro” é usada em uma página de “Isenção de Responsabilidade”, onde a autora destaca que cada um faz a utilização do MMS da maneira que preferir e tira de sua responsabilidade as complicações médicas que os usuários possam ter. O livro é colocado como um propagador de estudos e conhecimentos, mesmo que já no início todas as dicas de como usar e diluir o produto sejam dadas.

Para iniciar o processo, o protocolo da escritora não vai diretamente ao MMS. Em um primeiro momento, é necessário que a pessoa a ser “curada” faça uma dieta extremamente restrita, que consiste na eliminação total do glúten, leite, soja, corante, conservantes, açúcares e algumas frutas.

“A dieta é a base para o resto do protocolo, algo similar a estabe­lecer as fundações de uma casa para que o resto da estrutura fique firme. Aderir à dieta é fundamental para a eficiência do resto do Protocolo”, escreve Kerri em uma das páginas. Durante toda a escrita do texto, a escritora fala em “estudos científicos”, “testes” e “cientistas”, mas nunca especifica quais pesquisas são essas ou quem são esses especialistas.

Ao contrário do que Kerri afirma, a médica neuropediatra e diretora clínica da INTEGRAR – Clínica de Saúde Interdisciplinar, Ellen Manfrim explica que não existem evidências científicas de uma relação entre a alimentação e o TEA.

“Não existe nenhuma comprovação científica de que existem determinados alimentos que causam ou pioram a sintomatologia do autismo. Por isso, não se recomenda nenhuma dieta exclusiva ou específica para o TEA.”

Em complemento à Manfrim, o também neuropediatra Gildomar Cruz faz uma relação entre alergias e restrições alimentares e a irritabilidade de pessoas com o espectro.

“Considerando o aumento no número de restrições alimentares na população, não são todas as pessoas que sabem das suas alergias e intolerâncias. Então, se você pega uma criança, que já é autista, e tem essas restrições, ela vai se irritar. Dentro do transtorno esse quadro de irritabilidade já é mais fácil de “explodir”, mais fácil de se ter uma crise. Essa história de tirar alimentos só é válida se a criança tiver alguma restrição.”

Após uma semana na dieta, Rivera, então, indica o início da utilização da substância diluída em água. Nesse caso, o uso pode ser feito através da ingestão, por banhos ou via enema, ou seja, aplicação via anal.

No âmbito científico, absolutamente nenhuma forma de aplicação do MMS é recomendada. O enema anal, divulgado por Rivera e cultuado pelos pais, no entanto, é o mais cruel. A neuropediatra Manfrim diz que muitas crianças não têm a percepção de que a substância é usada como um medicamento, e isso pode gerar um trauma.

“É uma medicação usada continuamente. Então isso pode gerar um desconforto muito grande pra criança, pode gerar um transtorno de comportamento muito maior do que a criança já apresenta”, afirma.

Entre os “desconfortos” citados por Manfrim estão vômitos, dores de cabeça e até perda de tecidos que revestem diversos órgãos da criança. Nesse caso, o tecido lesionado que sai é considerado pelos responsáveis como um “avanço” no tratamento, já que muitos acreditam que o autismo possa estar relacionado a vermes que ingerimos através da ingestão de alimentos e água.

“O MMS é um produto altamente corrosivo. Existem relatos de pacientes que tiveram descamações do intestino e do reto. Quem defende o uso da substância, afirma que esses pedacinhos de tecido que saem são os vermes que causam o autismo, quando na verdade são tecidos da mucosa do intestino”, explica.

Nos grupos já citados, pais e responsáveis compartilham fotos do tecido extraído pela criança comemorando a saída dos ‘vermes’ e reforçando a alienação proporcionada pelo MMS.

No livro, a autora chega a mencionar os desconfortos explicados por Manfrim, que ela denomina como “reação de Herxheimer”. As reações não são tidas, todavia, como algo negativo. Para ela, isso indica que “o paciente está sofrendo uma sobrecarga de elementos patogênicos e toxinas”.

Entre as reações que a própria Kerri descreve estão a transformação do comportamento das crianças, deixando-as apáticas, diminuição do apetite, bolhas pelo corpo, inchaço dos membros, resfriados, fadiga, dores de cabeça, náuseas, vômitos, mudanças no sono e diarreia. Ainda assim, a autora afirma que essas ações do corpo são resposta a desintoxicação, mas que a substância deve ser suspensa pelo dia para que o corpo se reequilibre.

“A desintoxicação é ótima e é isso que queremos, mas sem pressionar o corpo ainda mais.”

“Me sinto mal”

A equipe de reportagem conseguiu conversar com Roberta Menezes*, uma usuária do MMS. Ela diz que faz uso da substância junto do seu marido e da sua filha.

A família não tem casos de autismo, usam a substância para outros fins. Mas, essa situação ilustra bem o quanto os usuários do alvejante não acreditam que os efeitos colaterais sejam, de fato, algo que faz mal pra saúde.

“Tem muita gente que não consegue tomar o MMS, aí tem que abaixar a quantidade da mistura. Dá muito enjoo, eu tenho estômago de avestruz e mesmo assim me senti mal quando comecei”.

A mulher continua contando os efeitos colaterais que teve ao ingerir o MMS. “A medida que a gente vai tomando a solução o nosso corpo vai liberando as toxinas e se curando, então tem que ser devagar porque dá diarreia, vômito, dor de cabeça, dá tudo”, contou

Perigo de morte

Na visão da usuária, os efeitos colaterais significam o corpo se curando. A ciência, no entanto, afirma que esses efeitos são o corpo pedindo socorro, deixando claro que está sofrendo com o uso do MMS. A psiquiatra infantil da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Josiane de Oliveira, afirma que o uso da substância pode matar.

“O uso pode gerar uma intoxicação, um desequilíbrio hidroeletrolítico e até ter um fim ruim, é preciso que os pais estejam atentos aos tratamentos que são comprovados cientificamente”, explicou.

Apesar de Roberta ainda fazer o uso e defender o MMS, nós sabemos de uma pessoa que usou e se arrependeu. Cláudia, já citada na reportagem, fala com muito arrependimento e choro engasgado sobre a época que fez o uso em seu filho.

“Eu nem cheguei a usar tudo, mas fiz o enema, isso foi escondido do meu marido, então me arrependo muito. Eu vejo as consequências nele e isso me dói”, diz.

O professor de química medicinal e planejamento de fármacos, Adriano Andricopulo, destaca os perigos de sua utilização. “Esses produtos são tóxicos se ingeridos e podem colocar em risco a vida das pessoas. As principais agências reguladoras do mundo não recomendam o seu uso e já emitiram diversos alertas contra a comercialização para prevenir ou tratar qualquer doença.”, alertou.

Apesar da crença dos usuários, a mistura do clorito de sódio com o ácido clorídrico, que geram a substância, não é recomendada por profissionais e tampouco pela Anvisa.

Proibida a fabricação, distribuição, comercialização e uso desde 2018 pela Resolução N° 01407/2018, a mistura pode causar diversas complicações à saúde.

Procurada pela equipe do Esquina, a Anvisa emitiu uma nota sobre o uso do MMS. No documento, a agência declarou que a indicação da mistura para o tratamento de doenças é uma infração considerada gravíssima.

“A indicação de ‘MMS ou Dióxido de Cloro’ para o tratamento de doenças requer registro do produto como medicamento. Na falta desse registro (que é o caso do MMS, registrado apenas como ‘saneante’) a indicação ou a comercialização é considerada uma infração sanitária gravíssima, passível da aplicação das penalidades previstas pela Lei nº 6.437.”

Assim como a Anvisa, o órgão regulador norte-americano, Food and Drug Administration (FDA), também não recomenda o uso da substância ou qualquer outro equivalente desde 2010. No site oficial da agência eles afirmam que “ingerir esse produto é o mesmo que beber alvejante”.

Ainda assim, o próprio livro de Rivera responde ao que ela considera como “críticas” dos verdadeiros especialistas. Segundo ela, o que difere o MMS de um alvejante ou de um clareador industrial são as concentrações.

“Vários críticos insistem que o MMS é água sanitária e, portanto, veneno. O dióxido de cloro, o produto químico usado no MMS, nunca foi utilizado no âmbito doméstico como alvejante para limpar banheiros. É um al­vejante industrial quando utilizado quatro mil vezes mais concentrado que o MMS. O MMS nunca foi utilizado para fins alvejantes em âmbito do­méstico em nenhum lugar do mundo”, continua distorcendo.

Segundo ela, o uso do MMS não apenas não faz mal como também melhora resultados de exames. “Muitas crianças fizeram regularmente exames de sangue, urina, fezes e, de forma geral, apresentaram resultados mais saudáveis com a utilização do MMS do que antes de começarem a usá-lo. O MMS fortifica os sistemas imunológicos, melhora a função do fígado, reduz as cargas virais e bacterianas, cândida e inflamações.”

Uma química da Anvisa, que preferiu não se identificar, explicou o porquê esse argumento de Rivera é não só mentiroso, como perigoso. Segundo ela, o ácido clorídrico é formado pelas moléculas de cloro e hidrogênio e quando colocado em contato com a água, a substância libera uma quantidade muito alta de hidrogênio. Isso faz com que o ácido clorídrico seja considerado um ácido forte. O clorito de sódio, por sua vez, é um sal.

“Quando a gente mistura essas duas coisas [o ácido clorídrico e o clorito de sódio], elas se separam, ocorre uma dissociação, como está tudo separado, uma hora vai juntar. O que vai se atrair é o sódio e o OH, que vem da água. O nome dessa mistura é hidróxido de sódio, que é uma solução forte e muito perigosa, usada em soluções de baterias, na mistura do lança perfume e não deve ser ingerida, independente da concentração, faz mal do mesmo jeito”, explicou a profissional.

*Os nomes de todos personagens são fictícios, para proteger a identidade dos mesmos. Os profissionais e especialistas, no entanto, tem seus nomes e especializações reais, com exceção da profissional da Anvisa, que preferiu não se identificar.

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