Menu
Brasil

A busca criminosa pela cura do autismo: ‘Não podemos esperar pela ciência’

Entenda o jogo psicológico feito pela autora do livro ‘Curando Sintomas Conhecidos como Autismo’ para enganar a população

Redação Jornal de Brasília

25/11/2021 16h19

Atualizada 07/04/2022 14h30

Foto: Canva

Evellyn Luchetta e Geovanna Bispo
[email protected]

Esta é a terceira publicação de uma série de reportagens que expõe uma uma história de negacionismo e sério risco à saúde. Em anúncios, grupos na internet e livros, uma mistura química é defendida livremente como uso medicinal contra o autismo: o MMS. 

A utilização da mistura de ácido clorídrico com clorito de sódio como tratamento e cura para diversas doenças é considerada ilícita por não haver comprovação científica, sendo contra indicada por especialistas e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 

Até o momento, não existe oficialmente uma explicação para o autismo e, consequentemente, não há uma cura. De acordo com o psicólogo Márcio Moreira, existem muitas pesquisas, mas nenhuma conclusão. “Existem bastantes pesquisas, mas a rigor a resposta é não, não existe uma causa. Existem sugestões de relações com gene, com causas genéticas, alterações no cérebro, mas não existe nada certo”, explica.

E é exatamente essa falta de explicação que Kerri Rivera, autora do livro “Curando sintomas conhecidos como autismo”, que foi um dos principais disseminadores dos princípios do MMS, utiliza como munição para convencer os pais e responsáveis para a utilização do MMS.

Durante todo o livro, que virou uma espécie de guia para quem quer fazer uso da substância, a autora afirma que a ciência está atrasada e que os “nossos filhos” não podem esperar pela medicina. “Existe uma longa e difícil estrada a ser percorrida para a compreensão do espectro, mas os nossos filhos não podem esperar esse avanço”, escreveu em uma das páginas.

Além de suas próprias falas, Kerri se utiliza de supostos relatos de pais que teriam utilizado a substância em seus filhos e tiveram êxito.

“Eu oro para que todos esses testemunhos cheguem às pessoas que necessitam deles, e como resultado, crianças deixem de sofrer à medida que os pais enxerguem seus filhos refletidos nessas palavras e compreendam que, se outras crianças foram curadas, seus filhos também podem ser”, teria falado um dos responsáveis por uma criança com o espectro.

Kerri, além do emocional, ainda tenta a todo momento desqualificar os profissionais que tentam se opor ao MMS, incentivando a questionar e, se necessário, desvalidar o que eles recomendam.

“É bem provável que seu médico não seja químico e pode ou não ser fluente na língua dos oxidantes. Caso esteja trabalhando com médicos, explique o que você sabe sobre o dióxido de cloro ao falar-lhe sobre acrescentar o MMS ao protocolo de seu filho. A melhor coisa que podemos fazer por nossas crianças doentes é tomar decisões informadas. Entender a diferença entre o cloro e o dióxido de cloro ou água sanitária e dióxido de cloro pode significar a diferença entre seu filho alcançar ou não a recuperação.”

Adriano Andricopulo, que é químico medicinal, planejador de fármacos e professor da disciplina, se encaixa no perfil que Rivera teoricamente procura quando diz que “é bem provável que seu médico não seja químico”. Ainda assim, o especialista repudia qualquer tipo de uso medicinal do MMS. “Não é recomendado o uso em qualquer forma dessas substâncias, independente da doença ou do tratamento”, ressalta.

A falta de uma causa e uma cura não são um indicativo de atraso na ciência como sugere Rivera. O autismo não é tratado pelos profissionais como uma doença, logo, uma cura não é atribuída.

A psiquiatra infantil Josiane de Oliveira destaca essa característica. “Não existe uma causa, é uma síndrome e não é possível falar sobre uma cura justamente por não existir uma causa única. O que existe são medicamentos e tratamentos para auxiliar a criança com as características do autismo, para deixá-la confortável e estável.”, afirma. 

Josiane destaca que é a compreensão, o amor e a empatia que faz com que as crianças melhorem e se sintam mais confortáveis no meio social.

“É necessário ter informação para proteger essas crianças, com o que de fato tem comprovação científica sobre o autismo, muitas vezes é um quadro com atraso ou problema comportamental, problema com rotina, dificuldade de adaptação e isso gera uma descontentação no comportamento então a criança fica agitada, agressiva, arredia, é preciso terapia e calma para apaziguar esse quadro”, afirma a médica especialista, ao apresentar o completo oposto do sugerido no livro de Rivera. 

“Temos que abandonar o filho que queríamos ter e aceitar o filho o que a gente tem”

Especialistas afirmam que passar pelo diagnóstico de autismo, para os pais, é como enfrentar um luto. “A qualidade de vida de pais com filhos com o TEA é, no geral, menor do que a qualidade de vida de um pai com filhos com desenvolvimento típico”, afirma o psicólogo Márcio Moreira.

A realidade pontuada por ele foi a mesma vivenciada por Lorena*, mãe do Mateo*, uma criança com autismo severo. “A gente espera que o médico diga que ele é uma criança típica. É um processo doloroso, algumas pessoas ficam em luto durante muito tempo, temos que superar a expectativa do filho que a gente queria ter e aceitar o filho que a gente realmente tem. É bem importante passar logo pelo luto”, afirma. 

Isso acontece, segundo a médica neuropediatra e diretora clínica da INTEGRAR – Clínica de Saúde Interdisciplinar, Ellen Manfrim, pela falta de informação que boa parte dos pais têm. “É muito comum que no momento do diagnóstico os pais fiquem desesperados, principalmente pais que não tem um acesso ao conhecimento muito grande”, explica.

A dificuldade de aceitação, o luto e o desespero podem fazer com que os pais procurem outras alternativas fora do campo científico. Lorena nos contou que chegou a ser apresentada ao MMS. Segundo a mãe, ela só não usou pois só encontrou a mistura no Mercado Livre, site que ela não considera seguro.

“No exterior, uma senhora me falou a respeito do MMS. Eu não usei porque, além do Mercado Livre, a aplicação é pelo enema anal e eu não teria coragem de fazer isso com meu filho”, conta Lorena, que considera o enema anal uma agressão, quando usado para aplicar a substância. 

Lorena chegou a ouvir falar sobre Kalcker durante uma viagem ao exterior, em busca de tratamento para Mateo. Ela contou que procurou e assistiu uma palestra do autor em espanhol. Durante a fala, Kalcker utilizou uma abordagem apelativa sentimentalmente, semelhante a de Kerri durante o livro. “Era muito tentadora. Ele fala de uma maneira atraente e dá esperança para famílias que estão desesperadas.” 

A mãe ainda considera injusto julgar os pais ou responsáveis que decidem utilizar o MMS, já que eles, no desespero e esperança de uma vida melhor, são quase tão vítimas quanto os filhos.

“Quem eu julgo é quem apresentou esse tipo de técnica, como o Andreas Kalcker, é muito sem vergonha se aproveitar da fraqueza e da inocência das famílias por querer algum dinheiro. Tenho muita pena das crianças que passaram por isso, acredito que seja uma violência e principalmente um trauma”, finaliza.

Nossa conversa com Lorena foi marcada por uma história emocionante de dedicação à busca de tratamentos e melhor qualidade de vida para o seu filho. Ela nos contou sobre a maior dificuldade ao descobrir o autismo. Essa pedra no caminho foi o momento do diagnóstico.

“Eu vejo muitos médicos apresentando o autismo como algo mais fácil do que realmente é. Quando, na verdade, o autismo severo é bem difícil de controlar. Eu prefiro saber bem a realidade porque, quando se coloca panos quentes, as famílias pensam que não precisam se preocupar tanto”. 

Ela opina que essa amenização do quadro atrapalha no tratamento e na urgência com que os pais têm que tratar a saúde dos filhos. “A estimulação precoce é a coisa que mais pode funcionar no autismo, quando o médico fala que é leve os pais podem não se preocupar e não tratar justamente na fase que se deve dedicar ao máximo”.

Ao fim da entrevista, a mulher nos diz que o que restou para ela é uma esperança no avanço do tratamento do espectro e não uma crença infundada de alternativas não científicas. “Eu sempre tenho esperança de que um dia surjam avanços. É triste saber que não existe uma cura, mas como mãe, sempre vai ter uma esperança”, finaliza. 

“Assustador”

Gabriela* é mãe do Miguel, uma criança autista de 5 anos. Miguel foi diagnosticado com autismo aos 3 anos. A mãe do pequeno notou um atraso na fala, algo que até hoje não foi desenvolvido, uma seletividade alimentar muito grande e um distanciamento do meio social. Miguel tem uma característica muito comum no autismo, o hiperfoco, pode passar horas olhando para o mesmo objeto.

A mulher nos conta que de início, ao invés de receber uma chuva de informações, se deparou com muitas fake news e desencontros em explicações. “No início foi assustador, principalmente porque eu era bem leiga no assunto e eu dependia muito da opinião de pessoas no momento. Já ouvi que autismo causa psicopatia, que crianças autistas maltratam os pais”.

Ela continua dizendo que só quando buscou conviver com pessoas autistas e procurou ajuda médica, que se sentiu acolhida e entendeu de fato o que era o autismo. “O neuropediatra que nos atende sempre fala, ‘olha, você não é nenhuma sorteada, o autismo é comum, você não é diferente por isso’”.

Gabriela relembra que as fake news que recebeu vieram de pessoas que conheciam o autismo, que conviviam com o espectro. “Isso assusta, porque a pessoa que convive que deveria ter certeza ao falar e vem com essa desinformação.”

A mãe do Miguel acredita que essa seja a principal causa de grupos que incentivam o MMS crescerem cada vez mais. E escritores como Rivera, são cada vez mais cultuados.

“As pessoas são capacitistas, não é só desinformação. você tem uma visão de mundo e não aceita que nem todo mundo enxerga as coisas da mesma forma que você. Principalmente em relação aos pais de autistas que acham que isso é uma missão divina e uma forma de pagar os seus pecados na terra”, opina. 

Para ela, ao descobrir o autismo, o que deveria ser feito, é agir com compreensão e amor, como ela fez. “Depois do diagnóstico, eu parei de me cobrar, comecei a permitir que ele exigisse o poder dele de negar. Parei de me cobrar pra ele falar, dei mais liberdade. Eu aprendi a me comunicar com ele de outras formas, a ver as formas dele de se comunicar”, explicou. 

A visão de Gabriela é apoiada pelos profissionais que conversamos, Márcio Moreira afirma que a terapia e a compreensão são muito importantes. “A intervenção com psicólogos, terapeutas, pedagogas e afins, faz com que a criança comece a se desenvolver mais, a aumentar o repertório e conseguir uma independência maior”, diz. 

Josiane concorda com a afirmação de Márcio. “Atualmente, não existe uma substância onde a gente possa falar que é uma cura pro autismo, a gente só consegue falar sobre tratamento dos sintomas, com terapia, acompanhamento e paciência.”, afirma 

*Os nomes de todos personagens são fictícios, para proteger a identidade dos mesmos. Os profissionais e especialistas, no entanto, tem seus nomes e especializações reais, com exceção da profissional da Anvisa, que preferiu não se identificar. 

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado