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Presidente baixo clero

Rudolfo Lago

22/05/2020 5h35

Presidente baixo clero

O presidente Jair Bolsonaro foi deputado federal por 27 anos. Neste período, não há nada de muito relevante na sua trajetória. Bolsonaro nunca presidiu uma comissão, nunca foi líder de partido, nunca ocupou uma secretaria da Mesa. Ao longo desses 27 anos, ele aprovou dois projetos de lei e uma emenda constitucional. A PEC é a que prevê impressão do voto pelas urnas eletrônicas, algo que a Justiça Eleitoral chegou a testar mas não implementou. Um dos projetos de lei prevê redução de IPI para determinados produtos de informática. O outro autoriza o uso medicinal da fosfoetanolamina, ou “pílula do câncer”. O hoje presidente diz que esse baixíssimo aproveitamento dos seus projetos deve-se ao fato de ter sofrido discriminação por seus pensamentos de direita.

Bem, algumas figuras de destaque da política brasileira nos últimos 30 anos não eram exatamente próceres de esquerda. Não era de esquerda, por exemplo, Antonio Carlos Magalhães, que presidiu o Senado por duas vezes. José Sarney, último presidente do PDS no período em que o partido, antigo Arena, era a principal força de sustentação política da ditadura militar, não era também um perfil de esquerda. Ou Jarbas Passarinho, ministro tanto nos tempos democráticos no governo Fernando Collor como nos tempos ditatoriais do regime militar.

Bolsonaro não teve maior destaque por ter sido ao longo desse tempo um parlamentar com o perfil típico daquilo que se convenciona chamar no Congresso de “baixo clero”. A turma que não se destaca muito, ficando numa posição coadjuvante no debate político. Sua estratégia para avançar e se tornar presidente consistiu em adicionar na sua trajetória posicionamentos e atitudes polêmicas. Essa foi a forma de vez por ou outra ganhar destaque e ir consolidando a imagem de que era alguém sem papas na língua, capaz de tocar na ferida de problemas que o país teimava em não solucionar. Foi esse o perfil que prevaleceu para aqueles que enxergaram nele uma alternativa para o governo federal em 2018.

Ao longo desse tempo, ele foi se abrigando em diversos partidos que costumam muito dar guarida à turma do baixo clero. Caso do PP, por exemplo. Que é também o partido com mais nomes condenados por envolvimento no mensalão. Nos momentos em que seu jogo de criar polêmica ficava mais arriscado e podia redundar na possibilidade de um pedido de cassação, as relações feitas dentro dessas legendas o ajudaram a evitar que o processo se aprofundasse. Assim, ele livrou-se diversas vezes da quebra de decoro e foi construindo a imagem do “mito”.

Ao se tornar presidente, imaginou-se que Bolsonaro certamente saía desse patamar do político baixo clero. Afinal, ocupava o principal posto de comando do país. Assim, figuras de destaque se aproximaram dele. A mais vistosa Sergio Moro, o juiz que, aos olhos de muitos, parecia um herói pelo desmonte que fazia dos esquemas de corrupção que misturavam os mundos empresariais e da política. Independentemente do que se ache ou da aparente confusão atual dos seus posicionamentos, outra figura de destaque semelhante era Regina Duarte, uma das atrizes mais conhecidas do país. Paulo Guedes, o ministro da Economia, até entrava com grande força no governo como o tal “Posto Ipiranga”, mas até então não era exatamente um economista visto por seus pares como do primeiro time.

Aos poucos, porém, as confusões em que Bolsonaro vai se metendo como presidente parecem o estar levando de volta ao antigo perfil de político baixo claro. Se Regina Duarte vier mesmo a ser substituída na Secretaria de Cultura pelo ator Mário Frias será aí um traço veemente. Sai uma atriz renomada e entra um galã de Malhação (para quem não sabe, Malhação é um programa da TV Globo no qual jovens promessas fazem sua primeira aparição apoiadas por veteranos que estão ali para treiná-los – a jovem promessa que seguir tendo como referência a passagem por Malhação definitivamente falhou na carreira).

Como já foi traço veemente Moro ser substituído por André Mendonça. Luiz Henrique Mandetta não era exatamente um parlamentar de primeiro time. Médico, vinha se destacando no Ministério da Saúde. Foi substituído por Nelson Teich, nome mais respeitado e reconhecido no meio médico. Os dois foram trocados agora por um general.

Presidente da República, Jair Bolsonaro durante encontro com o Presidente da Ca?mara, Rodrigo Maia.
Foto: Isac Nóbrega/PR

E vão entrando no governo os partidos que, no Congresso, costumam abrigar boa parte dos parlamentares do baixo clero. Caso do PP velho de guerra. Do PTB. Do PL. Abocanhando cargos no segundo escalão. Desta vez, Bolsonaro não tem pelas costas um processo de cassação por quebra de decoro. Mas tem diversos pedidos de impeachment hoje na gaveta do presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Enquanto isso, a “pílula do câncer” foi substituída pela cloroquina. A vítima não é mais a deputada Maria do Rosário (PT-RS), mas há outros que Bolsonaro agride e manda calar a boca. O deputado baixo clero virou um presidente baixo clero. Mas foi assim que se construiu o “mito”. Talvez seja assim que Bolsonaro imagine que o “mito” possa manter-se. Ou ser reconstruído.

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