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Coluna Informação #022 – Pajelança

Acreditar cegamente na hidroxicloroquina e na cura milagrosa da covid-19 é acreditar em pajelança. Não cabe a autoridades em momento grave como esse

Rudolfo Lago

10/04/2020 6h26

Antes que já se formem, neste Brasil atual que pouco reflete, pouco pensa e já reage, hordas de ataque a me acusar de desdenhar da cultura popular e da cultura indígena, digo logo que a intenção do que vai abaixo não é essa. É somente dizer que, em ciência, tudo é válido ser discutido. Mas somente pode ser indicado como panaceia quando de fato assim comprovar a ciência. Do contrário, somente produzirá falsas ilusões.

Em 1986, o Brasil perdeu uma das suas mais queridas personalidades, o naturalista Augusto Ruschi. Em 1975, Ruschi buscava na floresta novos exemplares de beija-flores, uma de suas maiores paixões. Estava na Serra do Navio, no Amapá, quando deparou com diversos sapos da espécie dendrobata. Pediu ajuda aos índios para capturar os sapos. Os índios se recusaram e fugiram correndo. Ruschi ignorou os sinais. Pegou 30 sapos. Um dia depois, foi internado em um hospital. Estava seriamente contaminado.

O dendrobata é um sapo altamente venenoso. Expele uma peçonha que corroí o corpo por dentro. No caso de Ruschi, isso foi acontecendo lentamente. Os problemas só foram se agravar e levar Ruschi a um quadro gravíssimo onze anos depois. Uma reportagem do Jornal do Brasil, escrita por Rogério Medeiros, alertou o país para o drama que o naturalista vivia. A partir daí, houve uma grande mobilização para tentar salvar Augusto Ruschi.

Foi quando se imaginou que os índios, por estarem familiarizados com o sapo venenoso, poderiam ter a solução. Sensibilizado, o então presidente José Sarney ajudou para que fossem levados até Ruschi o cacique Raoni, da tribo dos txucarramãe, e um pajé, Sapaim, da tribo kamayurá.

Raoni e Sapaim foram levados ao Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde se realizou a “pajelança”, uma cerimônia ritualística, também com o uso de ervas e remédios naturais. Segundo Rogério Medeiros, que teve autorização de assistir ao ritual, Sapaim retirou do pescoço de Ruschi uma substância escura e malcheirosa que disse ser o “veneno” do sapo.

Na época, tudo isso teve enorme repercussão. Porque, depois do ritual, de fato Ruschi melhorou muito. Ficou bem disposto e chegou mesmo a declarar que parecia estar curado. Quatro meses depois, o naturalista morreu, vítima de cirrose virótica. O veneno corroíra seu fígado.

Sapaim chegou a dizer mais tarde que ele tinha de fato tirado o veneno. Mas que nada pudera fazer quanto às complicações que ao longo do tempo ele produzira no organismo do naturalista. Algo que até faz algum sentido.

O fato é que, durante o período entre a pajelança e a morte de Ruschi, muito se discutiu no Brasil questionando a ciência tradicional e tecendo loas à cultura popular, que parecia naquele momento triunfar. Em uma entrevista a Bolívar Torres, o próprio filho do naturalista, André Ruschi, afirma sobre todo esse debate: “Houve uma cultura sensacionalista (…). Havia alguns interesses comerciais que estavam sendo mobilizados formando-se um jogo comercial no mercado, oculto do público, da grande mídia”.

Agora, diversos pesquisadores estudam o uso de determinadas substâncias que poderiam ser eficazes no combate ao novo coronavírus. Uma dessas substâncias é a hidroxicloroquina. Os estudos ainda não são definitivos.

Assim, soa como irresponsabilidade querer desde já vender a hidroxicloroquina como panaceia milagrosa. Da mesma forma, porém, soa igualmente como irresponsabilidade querer desde já condenar o uso da hidroxicloroquina como se fosse uma espécie de veneno. O uso da medicação precisa, é claro, ser ministrada, testada, para que a ciência, afinal, chegue a uma conclusão de fato sobre a sua eficácia.

Como no caso das ervas e rituais de Sapaim, elas talvez tivessem algum efeito sobre o veneno do sapo. Mas verificar de fato como se dá tal efeito e a sua eficácia, isso cabe à ciência. Os cientistas sabem que nada é panaceia milagrosa. Embora poucos leiam, é por isso que os remédios vêm acompanhados de bulas que alertam para os efeitos e eventuais danos de cada medicação. A essa altura, acreditar cegamente na hidroxicloroquina e na cura milagrosa da covid-19 é acreditar em pajelança. Não cabe a autoridades em momento grave como esse.

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