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Teatro e Dança

Peça ‘Morte em Veneza’ faz elegia ao belo com vilão da novela ‘Novo Mundo’

Dirigido por Vinicius Coimbra, ele encarna, a partir da sexta-feira (21) o escritor Gustav Aschenbach na encenação do romance “Morte em Veneza”, clássico publicado em 1912

FolhaPress

20/04/2023 12h02

Foto: Divulgação

Gustavo Zeitel
São Paulo – SP

Mais uma tarde medonha no centro de São Paulo. Chovia forte, e a rua Amaral Gurgel era só cimento, lama e água. Entre biroscas e oficinas de automóveis, fica o Teatro Paiol, fundado há quase seis décadas. “Aqui eu aprendi a fazer teatro de texto”, afirma o ator Roberto Cordovani, de 66 anos, no fundo da sala escura.

Dirigido por Vinicius Coimbra, ele encarna, a partir da sexta-feira (21) o escritor Gustav Aschenbach na encenação do romance “Morte em Veneza”, clássico publicado em 1912 pelo alemão Thomas Mann.

“Envelheço sem hesitar”, diz a primeira fala do personagem. O gracejo não esconde a melancolia do homem. Era um dia qualquer em Munique, na Alemanha, mas o drama de Aschenbach já estava posto. Meditabundo, ele decide romper a rotina, errando pela Europa. Primeiro, desembarca em Pula, balneário na Croácia, chegando, depois, a Veneza, na Itália.

No hotel, ele se depara com Tadzio, o menino mais lindo que jamais vira em toda a vida. Enfim, o desconforto com a própria existência encontra sua forma. A umidade local afeta a saúde de Aschenbach, que decide partir. Mas, na estação de trem, ele se arrepende. Nem a epidemia de cólera, ocultada pelas autoridades, impede a escolha de se aproximar do jovem polonês.

O homoerotismo, porém, não é o tema do livro ou do monólogo. Ao contrário, Mann concebeu o drama como forma de debater o estatuto do belo. De imediato, a relação entre amor e morte cria o alicerce do texto transposto para a cena. Aschenbach vislumbra a grande beleza, quando os homens da cidade, são abatidos pela cólera. E Aschenbach, ele mesmo, vê seu tempo se extinguir.

“Tenho medo de monólogo, há muitos atualmente, mas não havia outra opção pertinente ao livro”, afirma Cordovani, sentado na escada que leva ao palco. “O diálogo da peça é de Aschenbach consigo. Tadzio não fala, só está na mente dele.”

Para dar vida à desorientação do personagem, o ator dialoga com vozes que irrompem em cena e logo desaparecem. Afinal, seus interlocutores são só fantasmas que assombram o pensamento.

À literatura, o teatro é um esclarecimento. A encenação é um ato de violência à consciência de um homem que só existia em palavras, morava na língua. É tudo ficção, mas poderia ser real. Substituindo a frase pela fala, o teatro encontra seu lugar na arte: ser um simulacro da existência.

Naquela tarde, Cordovani parecia alterar de espírito em cima do palco, enquanto repassava as cenas do monólogo. Explicando cada frase, o ator aproximou realidade e ficção. “Aschenbach entendeu que, durante a vida, camuflou as oportunidades dadas pelo amor”, diz ele. “A peça é um tratado sobre a condição humana.”

O ator, porém, não acredita na leitura mais comum do romance, a de que o escritor deseja Tadzio sexualmente. Prefere crer numa concepção holística do amor, entrevendo, entre os personagens, um sentimento de pai e filho.

Mann, de todo modo, aspira ao todo. “Morte em Veneza” é a elaboração romanesca da teoria do belo de Platão, o filósofo grego. Ao velho escritor, Tadzio é o reflexo temporal da beleza eterna. Por isso, sua figura é perturbadora, ela corresponde a um conceito imutável e atemporal.

Impossível de existir, o belo tem os contornos dramáticos de um amor não consumado. Fora de cena, ele é somente uma ideia, transformada num espectro, projetado no palco. Guilherme Cabral, no ar em “Travessia”, apare nas imagens como Tadzio.

Ao longo do tempo, “Morte em Veneza” ganhou outras adaptações. Em 1971, o diretor italiano Luchino Visconti adaptou a história para as salas de cinema. A célebre trilha sonora, o adagietto da quinta sinfonia de Gustav Mahler foi incorporada à montagem brasileira. Dois anos depois, o inglês Benjamin Britten ofereceria sua leitura operística -e sombria- do livro de Thomas Mann.

Radicado há 37 anos na Galícia, região da Espanha, Cordovani escolhe a dedo seus trabalhos. Em geral, prefere atuar em montagens de clássicos da literatura, como “Amar Verbo Intransitivo”, de Mário de Andrade, montado em 1982, “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson, em 2009, e o sucesso de público e crítica “O Retrato de Dorian Gray”, livro de Oscar Wilde, que ganhou os palcos, em 1991, com um cenário desenhado pelo paisagista Roberto Burle-Marx.

“Na Europa, ganhei dinheiro substancial, fazendo teatro de autor e falado em português”, conta Cordovani. “De cinco anos para cá, minha vida profissional está muito ligada ao Brasil, lá não há apoio financeiro para o teatro e, em Portugal, as companhias de Lisboa têm suas sedes, e as montagens têm os mesmos atores.”

Na época da mudança, ganhou 14 festivais. Com “Olhares de Perfil – O Mito de Greta Garbo”, arrematou, em 1988, o prêmio de melhor espetáculo do Festival de Edimburgo, um dos mais importantes do mundo.
No ano seguinte, foi considerado o melhor ator de Londres pelo Charrington London Fringe. Sem falar inglês, foi convidado a falar sobre seu método de atuação na Royal Shakespeare Company, na capital inglesa.

Só em 2017 estreou na TV, interpretando o vilão Sebastião na novela “Novo Mundo”, também de Vinicius Coimbra, vencedor do prêmio Emmy Internacional por “Lado a Lado”. “Quando fiz televisão, tive muito medo de ter um texto medíocre”, ele afirma. “Agradeço os convites, mas antes peço sempre a sinopse e o texto.”

O ator conta que o interesse pelo cânone da literatura surge da ambição de assegurar qualidade às suas peças. “Raramente, faço um texto inédito, o teatro brasileiro atual não me inspira tanto”, diz Cordovani. “Temos livros fundamentais que nunca ganharam uma encenação.”

MORTE EM VENEZA
Quando De 21/04 a 30/07; sex. e sáb às 21h; dom às 20h
Onde Teatro Paiol Cultural – r. Amaral Gurgel, 164, São Paulo
Preço De R$ 40 a R$ 80Classificação 14 anos
Elenco Roberto Cordovani
Direção Vinicius Coimbra

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