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Semana dos refugiados: conheça a história da família de Clarice Lispector

Em homenagem aos 100 anos da escritora, contaremos um pouco mais sobre a história da Ucrânia e a sua relação com o Brasil

Redação Jornal de Brasília

21/06/2021 14h47

Foto: Casa Rui Barbosa / Divulgação

Gabriela Gallo e Lucas Mayon
Agência de Notícias UniCEUB / Jornal de Brasília

No dia 16 de junho, os presidentes do Estados Unidos e da Rússia – respectivamente, Joe Biden e Vladimir Putin – se encontraram pela primeira vez desde o inicio de seus mandatos. Dentre os diversos assuntos discutidos entre os mandatários na a reunião que ocorreu em Genebra (Suíça), estava a Ucrânia. A Rússia e a Ucrânia tem relações históricas e diplomáticas extremamente conturbadas, marcadas pelo período conhecido como Holodomor (do ucraniano, matar pela fome).

Antes mesmo do período citado, ambas as nações (considerando a Rússia, na época, como a União da República da Sociedade Soviética, URSS) viveram extensos períodos de guerras, o que obrigou diversos Ucranianos a migrarem para o Brasil como refugiados. Dentre eles, estava a escritora Clarice Lispector. Dia 20 de junho é o dia do refugiado. Em homenagem aos 100 anos da escritora, contaremos um pouco mais sobre a história da Ucrânia e a sua relação com o Brasil, sendo Clarice seu elo.

Início…

A Europa era novamente palco de uma guerra. Mas, desta vez, os combatentes não eram turcos, russos, poloneses, cossacos, tártaros nem britânicos. Dezenas de milhares de atiradores monarquistas do Exército Branco eram bombardeados por canhões operados por artilheiros comunistas do Exército Vermelho. Os mesmos canhoneiros eram então rasgados pelas metralhadoras dos anarquistas do exército ucraniano de Nestor Makhno. “Quando se dá a revolução russa, os Bolcheviques tomam o poder, imediatamente estoura uma guerra civil. E essa guerra civil vai durar de 1918 a 1921. São três anos de guerra civil. Ao mesmo tempo em que se dá essa guerra civil na Rússia e países próximos, estoura a guerra civil ucraniana”, explica o professor de história Anderson Prado, pesquisador do tema no Instituto Federal do Paraná (IFPR).

No meio do massacre, a família Lispector fazia o que podia para sobreviver. O casal de comerciantes judeus Pinkhas e Mania se via tentando escapar junto de suas filhas de uma enorme convulsão que abalava a Ucrânia. Além da guerra e da fome, a família ainda precisava lidar com a hostilidade contra a sua etnia. Ataques deliberados contra judeus, denominados pogroms, se transformaram em rotina na Ucrânia e na Rússia durante a guerra, fruto de séculos de desconfiança religiosa. A Podólia, província onde os Lispector tentavam escapar do conflito, não era exceção.

Em 1919, mais um pogrom acontecia na Podólia com a participação de militares russos. Desta vez, os Lispector estavam entre os alvos dos ataques. A família sobrevivia, mas a um pesado custo. Segundo o biógrafo de Clarice Lispector, o escritor Benjamin Moser, Mania foi estuprada por diversos soldados, e ao menos um deles lhe transmitiu sífilis. A doença evoluiu nos meses seguintes, e apenas uma “solução” era conhecida no leste europeu: ter um bebê. A crença era de que isso pudesse curar a doença e seus efeitos colaterais. Nove meses depois, nasceu a pequena Haya, terceira filha do casal.

Haya nasceu em 10 de dezembro de 1920, em uma Ucrânia arrasada pela guerra ainda não acabada. Em meados de 1921, sem sequer ter aprendido a andar, os Lispector escapam da Ucrânia. Sua nova casa passa a ser Soroca, um pequeno vilarejo em território na época romeno, que hoje pertencente ao Moldávia. A fuga de Haya ainda criança vai fazer com que o eco da guerra na Ucrânia reverbere no outro lado do oceano.

Imigração

Voltemos no tempo para o ano de 1895, agora no Brasil. O país havia recém abolido a escravidão e, além de largar o negros à própria sorte, buscava retomar com uma mão de obra que fosse economicamente mais favorável para o patrão. “Um ex-escravo para trabalhar como mão de obra aqui no Brasil custava muito mais caro do que trazer um imigrante”, esclarece o professor Anderson Prado. Nesse tempo, a fome arrasava com a Europa. Mesmo que já tenha enfrentado outras crises agrícolas no passado, o continente sofria com uma contingência populacional muito grande para a crise. O Brasil aproveitou-se da oportunidade para incentivar a vinda de imigrantes europeus para trabalhar nas lavouras de café ou, no caso do sul do país, povoar grandes regiões para resguardar a fronteira.

O Brasil abriu, no século 19, as portas para imigrantes europeus, dentre eles, holandeses, italianos e eslavos (poloneses e ucranianos). Apesar da pouca presença marcada pelos holandeses, os italianos vinham em navios lotados trabalhar em fazendas de café de São Paulo e na serra do Rio de Janeiro, enquanto a maioria dos ucranianos foram para o sul do país, especialmente Paraná. O município de Prudentópolis é considerada hoje, a maior cidade ucraniana fora daquele país.

Anderson Prado afirma que esses primeiros imigrantes geralmente eram pessoas extremamente pobres e a maioria, analfabeta. “Ninguém deixa o seu país se você não estiver em condições miseráveis”, reforça. No entanto, entre 1910 e a Primeira Guerra Mundial desembarcou uma segunda leva de imigrantes ucranianos para o Brasil. Dessa vez, eram pessoas letradas que tinham contato com a igreja católica, portanto muitos padres e seminaristas. Ao chegarem, eles estabeleceram certa dominância nos imigrantes que já estavam lá: construíram escolas, organizaram associações, dentre outros.

Em ambas as épocas, a imigração foi motivada por fugas da fome, na primeira vez, e das guerra, no século 20.

Em março de 1922, a família Lispector está a bordo do navio ‘Cuyabá’ a caminho do Brasil. No mês anterior, o pai da família ao passar por Bucareste, capital da Romênia, conseguiu passaportes no qual foram incluídas a esposa e as três filhas emitidos pelo consulado da Rússia. Da Romênia, os Lispectors foram para Hamburgo (Alemanha), onde embarcaram no navio que os levariam para o novo destino. Já morava no Brasil (na cidade de Maceió) a irmã de Mania, Zina

A família estava nas estatísticas dos fugitivos da guerra na Europa. Ao desembarcarem na capital alagoana, todos os Lispectors precisaram adotar nomes brasileiros no processo de imigração. Pinkhas vira Pedro, Mania passa a ser Marieta e a pequena Haia, Clarice.

Culpa

O ano de 1930 foi marcante tanto para a vida de Clarice como para o povo ucraniano. Os motivos eram diferentes, mas envolviam duras perdas.

Desde pequena, há indícios nos textos da futura escritora de que aquela menina saberia que veio ao mundo numa tentativa supersticiosa de salvar a mãe mas, no dia 21 de setembro de 1930, Marieta Lispector faleceu vítima de sífilis contraída por seu estupro. Ela se foi e deixou Clarice, aos 9 anos de idade, segundo a biografia escrita por Benjamin Moser, com um sentimento de culpa por não tê-la salvado.

Ao mesmo tempo, do outro lado do mundo, a Ucrânia passou por um dos piores momentos da história, marcado pela fome. Em 1922, mesmo ano que os Lispectors chegaram ao Brasil, na Rússia de Lênin, começava a reconhecer o fracasso da Revolução Russa. “Houve uma última tentativa que é a anexação dos países mais próximos [a eles]. Ele [Lênin] dizia: ‘não se consegue estabelecer um plano comunal num país só, teria que ser no mundo todo’ […]”, contextualiza Anderson Prado. O pesquisador explica que, em 1922, Lênin fez essa anexação, “construiu” a União Soviética. “A Ucrânia é um dos primeiros países a ser anexado, por conta de sua fragilidade e por conta da produção agrícola naquele território”. Ele explica que a produção agrícola ucraniana era vista com bons olhos pela terra ter um solo muito fértil e que as técnicas usadas não eram aplicadas em outros países, o que elevava a produção.

Logo após a anexação do país, Lênin morreu deixando Stalin como sucessor e um dos períodos mais conturbados para o país. “O Stalin, ao contrário de Lênin, vai dizer ‘não, nós vamos nos fechar, nós não precisamos do resto do mundo e nós temos os países anexados’. Ele vai sair matando todo mundo e vai fazer uma política de anexação muito severa e de captação de recursos muito severo desses países”.

Em 1930, ano que começa a maior crise de fome sofrida na Ucrânia, há os efeitos da quebra da bolsa de Nova Iorque. Diante da oportunidade de exportar, Stalin intensificou ainda mais a captação de recursos em seus países anexados. “Se essa captação de impostos já era na base de 40% a 50% do que plantavam, agora vai aumentar para 80%. Vão acontecer genocídios – chamamos de holodomor -, vai ter na base 5 milhões de pessoas que vão morrer de fome”, reforça o historiador. Jamais os Lispector voltaram para a Ucrânia.

A semente do nacionalismo

Os massacres da guerra civil seguidos pela fome desse período traumatizaram a população ucraniana. “Foram tempos sombrios. As repúblicas soviéticas sofreram muito nas mãos do stalinismo. Esse período soviético da Ucrânia foi um período terrível”, afirma o professor. Faminto e expropriado de suas riquezas, o povo ucraniano desenvolveu um forte sentimento anti-soviético ao longo das décadas de 1930 e 1940.

No Brasil, a jovem Clarice Lispector já sem lembranças de sua terra natal, iniciava seus trabalhos como jornalista em meio a outro eco europeu. Os horrores vividos pelos povos soviéticos nas mãos de Stalin não vão passar despercebidos pelo mundo.

Uma nova ideologia passou a ganhar força na Europa Central prometendo expurgar o comunismo. No Brasil, o presidente Getúlio Vargas, influenciado pelos preceitos do fascismo italiano, trouxe sinais de aproximação a essas ideia. Na Ucrânia, o fascismo chegou mais de uma década depois. Em 22 de junho de 1941, a Alemanha de Adolf Hitler liderou um exército de mais de 3 milhões de homens de toda a Europa contra a União Soviética. Kyiv, a capital da Ucrânia, foi um dos primeiros alvos da invasão.

Os alemães foram recebidos como heróis pelos ucranianos. “A Alemanha invade a Ucrânia com a promessa de livrá-los do jugo comunista. Então pessoas aderem ao nazismo, muitos por vontade própria na intenção de se livrar do stalinismo”, contextualiza o historiador.

Quatro anos depois, o fascismo foi derrotado nos dois lados do Atlântico. Na Europa, a Alemanha e seus aliados são derrotados por uma coalizão que inclui o apoio brasileiro (que desistiu da aproximação com o Eixo). Já a Ucrânia é ocupada novamente pelo Exército Vermelho, retornando ao seu antigo status de república soviética.

A segunda guerra mundial plantou as sementes no Brasil para o regime militar de 1964. Já na Ucrânia, ela plantará as sementes para a ascensão do nacionalismo. E o nacionalismo ucraniano trará seu eco de volta ao Brasil.

Os ecos depois de Clarice

Clarice não viveu para ver a queda da União Soviética e a separação da Ucrânia em 1991. Também não viveu para ver o fim do regime militar no Brasil, em 1985.

Em meados de 2014, a Ucrânia se viu novamente em meio a uma guerra civil. Um presidente simpático à Rússia foi tirado do poder em meio a uma revolução. Separatistas russos tentaram formar um novo país ao redor da Bacia do Donets, no leste do país; ao mesmo tempo que a Rússia ocupa a Criméia, península no Mar Negro rica em gás natural. O trauma do stalinismo e das décadas de controle russo não adormeceu em meio a esse conflito.

Em resposta à nova agressão russa, uma onda nacionalista se ergueu entre os ucranianos, não mais dispostos a abrir mão de sua soberania. Mas esse pensamento veio com um preço. “Essa ideia do nacionalismo faz com que surjam grupos que aproveitem da situação para resolver problemas internos da própria Ucrânia”, explica Anderson Prado. Até então politicamente diversa, a Ucrânia passou a viver a ascensão da parcela autoritária de seus partidos de direita. Em 15 de dezembro de 2015, a alusão ao comunismo é oficialmente proibida no país.

Em 2020, o eco da nova guerra civil ucraniana chegou ao Brasil. Um movimento de direita autoentitulado “300 do Brasil” acampouo na Esplanada dos Ministérios para organizar manifestações de apoio ao presidente Jair Bolsonaro.

Em suas manifestações, os 300 levantam a bandeira do Pravy Sektor, partido ucraniano de extrema direita. Sua líder, presa em junho de 2020, era a paulista de 28 anos Sara Giromini, militante bolsonarista que viveu por um ano na Ucrânia. E até a prisão de seus líderes em 15 de junho, os 300 carregavam um lema: “vamos ucranizar o Brasil”.

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