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Música

No samba ninguém cancela ninguém, diz Fabiana Cozza, com inéditas de Nei Lopes

Assim que seu disco com canções inéditas de Nei Lopes ficou pronto, Fabiana Cozza repetiu o ritual já feito em trabalhos anteriores

Redação Jornal de Brasília

04/01/2024 13h43

Foto: José de Holanda / Divulgação

LEONARDO LICHOTE
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) –

Assim que seu disco com canções inéditas de Nei Lopes ficou pronto, Fabiana Cozza repetiu o ritual já feito em trabalhos anteriores: mandou-o para o amigo e escritor Marcelino Freire, esperando que ele sugerisse um título.

“Quando ele ouviu, disse que o nome do disco era ?Urucungo?, o nome de uma das canções”, diz a cantora.

“Quando expliquei a ele que urucungo é um dos nomes do berimbau, ele respondeu: ?É isso, esse disco é um chamamento, uma convocação?. Nada como um poeta”.

A ideia de “convocação” atrelada a um disco de samba que tem como espinha dorsal canções românticas de Nei, segundo Fabiana, pode parecer imprecisa. Há a presença de algumas faixas que justificariam esse viés mais marcadamente político.

Uma delas é a própria “Urucungo”, parceria de Nei com Marcelo Menezes, um jongo que aponta para raízes da tradição negra em solo brasileiro ?e para além dele, no solo africano.

Outra é “Dia de Glória”, da histórica parceria de Nei com Wilson Moreira. Ela abre o disco num dueto de Fabiana com Leci Brandão. A letra imagina um futuro, sintetizado no título, no qual “negro não vai ser rei só no Carnaval”.

“É uma utopia que vem sendo colocada na rua pelos movimentos negros há tempos, mas que na letra usa o Carnaval como metáfora. A utopia do ?Carnaval real?, como diz um dos versos”, afirma Fabiana.

A presença de Leci nesse contexto incorpora também o que a cantora mangueirense simboliza. “Para conquistarmos nossos direitos precisamos trazer quem já está lutando há muito mais tempo”, diz ela, que fez questão de cantar no tom de Leci. “Porque ali é uma Nanã, uma velha senhora dizendo calmamente, com toda a educação, como é que tem que ser feito.”

O chamamento que Marcelino identificou no álbum vai além dessas canções. A desilusão amorosa aparece em “Senhora do Mundo”, outra música de Wilson e Nei, numa oração a Iemanjá, introduzida pelo barulho da água e dos tambores.

Outras canções que falam de amor, como “Ré Sol Si Ré”, também da dupla de compositores, ou “Já Não Manda em Mim” ?de Ivan Lins, Vitor Martins e Nei? ou “Ofertório”, parceria com Francis Hime, trazem na letra, na melodia e nos arranjos a sabedoria profunda, gingante, sensível e maliciosa da tradição do samba. Sabedoria que ecoa como a convocação de um berimbau.

Na visão de Fabiana, Nei encarna esse chamamento em sua produção como compositor, romancista, poeta, dicionarista, enfim, de pensador único, que trafega com desenvoltura nas quadras de escola de samba e na academia.

“Vejo muita gente hoje se intitulando multiartista. Mas esse conceito se esvazia frente a Nei Lopes, frente à profundidade de sua construção. É preciso de tempo para ser um Nei Lopes”, diz a cantora. “Se você pensar na história social da música no século passado, ela era sempre contada por um viés majoritariamente branco. Nei vem sendo desbravador da diáspora negra e de como ela se deu no Brasil”.

A cantora chama a atenção para o que define como “força civilizatória do samba”. “Quando eu, como cantora popular, me deparo com compositores como Nei e Dona Ivone Lara, penso: eu preciso me munir disso aqui. Porque me vejo nesse país, esse foi o único país possível para mim, para o meu pai. O país de Nei Lopes, Wilson Moreira, Dona Ivone, Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra, Carmen Costa, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Djavan. Como Pixinguinha não é matéria das escolas?”.

“Urucungo” traz um painel diversificado de parceiros de Nei. Além dos citados, estão lá os compositores Fátima Guedes, Guinga, Dauro do Salgueiro, Reginaldo Bessa e Everson Pessoa. Guinga participa do disco também com voz e violão na sua “Jurutaí”. Estão também entre os convidados as cantoras Leci Brandão e Ilessi, o parceiro Francis Hime e o violonista João Camarero, além do próprio Nei.

Fabiana louva a todos, mas faz uma menção especial a Ilessi, convidada em “Alquimias”. “É assustador o que ela canta. Pedi um improviso a ela, que cantou mostrando uma compreensão total do que Dona Ivone fez. Eu convivi com Dona Ivone, conheço sua obra, mas não sei fazer aquilo”.

O cavaquinista e bandolinista Henrique Araújo dirige o disco, além de assinar a produção musical junto ao percussionista Douglas Alonso. Juntos, eles e Fabiana definiram a linha base da sonoridade do disco, que conjuga classe e pé no chão.

“A única orientação que dei foi: ?Vamos fazer um disco de samba como ele é. Nei Lopes é o que é’. Eles são batuqueiros da Barra Funda, gente de roda. Aí depois pensamos no tratamento para além da batucada, que já estava garantida”, diz. Estão lá músicos como a baixista Vanessa Ferreira e o violonista de sete cordas Gian Correa.

Fabiana pensa “Urucungo” também à luz da polêmica que envolveu seu nome há cinco anos. Na ocasião, apontaram que ela era clara demais para viver Dona Ivone num musical, o que a levou a renunciar o papel. “No samba ninguém quer cancelar ninguém. Naquele momento, o samba me acolheu. Só voltei à vida e ao meu corpo porque a turma do samba me chamou”, lembra a cantora.

Ela também menciona a ascensão da direita no Brasil nos últimos anos. “A ideia de fazer um disco sobre Nei Lopes representava poder respirar num tempo que estava irrespirável, poder cantar o amor numa época em que não pensávamos mais no amor”. Fabiana prefere porém, responder a pergunta inversa: “Qual o sentido de não fazer um disco como esse? Nei é um ganga, um feiticeiro, um mestre, um archote na escuridão”.

URUCUNGO

Onde Disponível nas plataformas de streaming
Autoria Fabiana Cozza
Gravadora Biscoito Fino

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