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Brasília

Isolados, em busca da sobrevivência

Comunidades quilombolas se
unem para cobrar providências do governo. O Jornal de Brasília foi a Cavalcante e viu de perto a luta dos moradores contra a covid-19.

Olavo David Neto

05/10/2020 6h54

foto :Valter Campanato/Agência Brasil Cavalcante (GO) – Quilombo Kalunga, Comunidade Engenho II

Sem opções, quilombo tenta se isolar do mundo

Preocupados com a covid-19, comunidades quilombolas se uniram para cobrar do Governo Federal medidas efetivas de combate ao vírus

“Graças a Deus estamos isolados, saindo apenas para comprar alguma coisa em Cavalcante. Meu filho pegou o vírus, ficou 24h entubado; só se salvou em Brasília mesmo”.

Calisto de Souza Santos , lavrador

“Tem um respirador em Cavalcante [Goiás], e a gente acha que eles nem sabem usar”, comenta Calisto de Souza Santos, lavrador de 51 anos e morador da comunidade quilombola Vão de Almas, na Chapada dos Veadeiros. Assim, a opção é ser cauteloso ao extremo, a ponto de impedir novas entradas na localidade.

“Meu filho mesmo pegou o vírus, ficou 24h entubado; só se salvou em Brasília mesmo”, aponta o quilombola, indicando que a capital da República, a quase quatro horas de distância, é a única esperança em caso de contaminação pela covid-19.

Até de 30 de setembro, eram 4.598 contágios confirmados entre a população quilombola no Brasil, com 166 óbitos e outros 1.219 em análise.

O levantamento é feito pela Coordenação Nacional da Articulação Quilombola (Conaq), por meio do portal quilombosemcovid19.org.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

São atribuídas às secções estaduais vinculadas à Conaq a coleta e análise dos dados, que são repassadas ao âmbito nacional. Casos como os do filho do lavrador Calisto, entretanto, não são registrados como infecções de quilombolas pelas Secretarias de Saúde municipais e estaduais, o que impede a identificação e o mapeamento dos casos.

Para conter os danos ao grupo étnico e social, uma união entre partidos políticos, movimentos sociais e entidades de representação quilombola protocolaram uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) em desfavor do Governo Federal. A medida, entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 9 de setembro, aponta “omissão” por parte da União para com o povo quilombola, sobretudo no enfrentamento à covid-19. Outro fator agravante, durante o período de pandemia, é a escassez de comida e água.

No Vão de Almas, por exemplo, a sustentação da alimentação dos moradores é a agricultura e o recebimento de doações de cestas básicas. Do Estado ou de particulares, as entregas são intermitentes, fator que gera insegurança alimentar. “Nós sempre recebemos cestas aqui, mas ultimamente parou. O governo parou. Sabe como é político, né? Só faz e não pergunta para quem é afetado”, alfineta Calisto. E este é o ponto principal da ADPF. Conforme o texto, é pedida uma liminar contra “atos comissivos e omissivos” do Poder Executivo Federal no combate à pandemia nas comunidades quilombolas.

São solicitadas ainda audiências com o advogado-Geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior, e o procurador-Geral da República, Augusto Aras a respeito das medidas adotadas ou não pelo Palácio do Planalto para conter contaminações nos quilombos. Além dos questionamentos, é apresentado o Plano de Combate à covid-19 nos quilombos, que, dentre outras ações, prevê a distribuição em massa de Equipamentos Individuais de Proteção (EPIs), água potável e materiais de higiene e desinfecção. É pedida também a garantia da soberania alimentar das populações, acesso regular a leitos e testagem, bem como controle da entrada de pessoas nos quilombos.

Signatária da ação, a advogada Maira Moreira, da organização civil Terra de Direitos, foi responsável pela parte da ADPF que trata da destinação de recursos públicos ao grupo étnico. Neste trecho é destacado que, já neste ano de 2020, “foram autorizados R$ 3,2 milhões da Ação Orçamentária da Ação Orçamentária para Reconhecimento e Indenização de Territórios Quilombolas, a ser executada pelo Incra, mas nenhum recurso foi pago até o momento”. Ao Jornal de Brasília, Moreira comentou os efeitos dessa fuga de investimentos do próprio Estado. “Essa redução afeta todos os procedimentos de demarcação das terras, o que leva a uma insegurança territorial”, aponta.

De acordo com ela, apenas 5% das cerca de seis mil comunidades são tituladas — ou seja, reconhecidas pela Administração Pública. Conforme argumenta, Maira explicita que isso reduz também as possibilidades de gerir “políticas públicas voltadas aos quilombolas, que garantam acesso à Saúde, Educação, produção de alimentos”. De acordo com um estudo de 2017 do então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, havia 75% da população quilombola vivendo em extrema pobreza.

Calisto comemora ao menos a reclusão do Vão de Almas. “Graças a deus estamos isolados, saindo apenas para comprar alguma coisa em Cavalcante”, comenta o quilombola.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou à reportagem que atua “diretamente no atendimento das comunidades quilombolas” através da Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

A pasta ainda reforçou que conseguiu, junto ao Ministério da Economia, verba para aquisição de 343.412 cestas de alimentos, contemplando “cerca de 171.283 famílias de comunidades tradicionais.

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