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Brasília

Rodoviária notívaga: o respirar após às 22h no coração de Brasília

O marco zero da capital abriga noturnamente novas histórias de cansaço, superação, dor, vícios e esperança

Agência UniCeub

22/04/2023 15h49

Foto por: Juliana Weizel

Na plataforma superior da Rodoviária do Plano Piloto, próximo ao beiral do mirante, uma fogueira improvisada esquentava a noite fria de quem estava por lá. Com baixo movimento, as sombras eram formadas por vigias, funcionários da limpeza e ascensoristas. Era um mundo novo ao passar pelo portal invisível dessa construção de 63 anos.

O ascensorista de 39 anos, Elizeu Martins, estava sentado em frente ao elevador do piso superior. Em uma cadeira elevada, ele parecia estar confortável naquele cenário. O que deu abertura para uma conversa. Na posição que estava, ele ficou. E relatou suas demandas para a capital brasileira.

“Eu acho que poderiam dar mais moradia para a população. Investir também no transporte público, porque, hoje, é uma vergonha a passagem muito cara e um transporte de má qualidade. Você não consegue ir para um local ou para outro dependendo da cidade que você mora. Então, eu acho que deveriam investir e espalhar mais [oportunidades] pela cidade.” 

O roncar do maquinário

Foto: Juliana Weizel

O tumulto de vendedores ambulantes dava espaço ao silêncio quase sepulcral. A exceção era do som dos motores dos ônibus. O roncar do maquinário preenchia o vazio da noite conforme se descia pela escadaria. Com fileiras de brasilienses esperando o início de sua viagem. Com fileiras de coletivos esperando o motorista dar partida.

O marco zero da capital abriga noturnamente novas histórias de cansaço, superação, dor, vícios e esperança. O coração pulsa fora do pico e a respiração de quem está ali mantém tudo vivo. Aquelas plataformas se transformam em passagem, abrigo e até moradia.

Quem também possuía essa visão, especialmente pluralidade dessas experiências, era o brasiliense Wesley Rocha, 48.

Foto: Pedro Santana

“A liberdade e os direitos fundamentais da pessoa ficam impedidos de alguma forma. A gente busca um apoio social público, mas a gente acaba ficando à mercê, tendo o direito de liberdade reduzido pela interferência institucional na nossa vida.”

Aqui o certo é o errado

São poucos os que concordam com entrevistas. A recusa se dava por medo de perder o último metrô, o último ônibus. Pessoas a serviço, tomadas pela exaustão da rotina ou desconfiança nas perguntas. 

Organizando os fios da máquina de limpeza, Luiz Ricardo, 45, fazia o seu trabalho na parte de cima da rodoviária, quando interrompeu brevemente. Nesta pausa, a nossa maior curiosidade era saber qual a experiência dele ali à noite. 

Foto: Pedro Santana

“Trabalhar aqui é perigoso. A segurança aqui está praticamente zero. Já vi uma pessoa perto da polícia gritando por socorro e eles não fazer nada, mano… tipo ela passou uns 10 minutos pedindo ajuda e a polícia só foi quando já tinha acontecido a violência. Praticamente aqui, mano, o certo é o errado. Às vezes, quando eu vou limpar o banheiro, vejo os cara vendendo droga, aí eles saem, a polícia entra e vai dar bacu nos cara que tá vindo do serviço, entendeu? Tá invertido, mano.”

Eu pediria respeito

Cada palavra era dita com intenção e servia ao propósito de desafogar os pensamentos nesse mar de opressão social.

Ivanete Mendes do Nascimento, uma gari de 43 anos, estava trabalhando junto com seu colega, Alexandre Batista de Sousa, 46. Eles foram vistos limpando as calçadas e asfaltos do centro da rodoviária. 

Ela empurrava um carrinho de lixo com rodinhas e suporte, onde tinha uma pá com um cabo de madeira não muito longo. Era possível perceber que ela se inclinava um pouco para limpar o chão. E esse movimento de reverência com a enxada urbana na mão, mostrava sua dedicação, mas também o cansaço do trabalho árduo. 

A precariedade não se restringia ao metal desgastado na ponta e nem o mais sujo da atividade era o lixo recolhido. Com a roupa de trabalho, ela aparentou estar cansada, mas isso não afetou a sua resposta enfática.

Não demorou para fazer uma declaração ao ser questionada sobre o presente que gostaria de receber no aniversário de Brasília. “Respeito”.

“Eu pediria de presente respeito. Porque negros e garis também são gente. Mais respeito com as pessoas que trabalham na coleta de lixo. Eu já fui xingada de macaca, de animal, entendeu? As pessoas não respeitam mais nossos perfis. Nós somos vistos como a escória da natureza”. 

A rodoviária é humana

Em uma briga física, dois homens que pareciam se abrigar sob aquele teto, aos gritos sequentes do mais velho: “Ladrão!”. Protagonizavam uma cena dolorosa, mas aparentemente normalizada e ignorada. Um motorista da Piracicabana, que não quis ser identificado nem dar entrevista, foi preciso ao comentar sobre o ocorrido.

Ele disse pouco, mas percebemos que era o suficiente. Ao ser perguntado sobre a experiência pessoal na rodoviária, o motorista apontou para os dois homens e indagou. “Você viu aquilo acontecendo? Se você viu, eu não preciso te contar nada, é só escrever: aquilo é a rodoviária.”

O impacto com que recebemos essa fala, retumbou nas palavras da Ivanete. Em continuação ao seu pedido, ela fez um desabafo.

“Hoje em dia nem criança está sendo respeitada. Tão invadindo as escolas e matando as crianças. Eu queria mais respeito da polícia também porque ela vê os polícia americano agredindo os negros e quer fazer igual no Brasil. Eu tô limpando a sujeira dos brancos. A gente é ser humano também”.

Dormir para sobreviver

Papelão, mantas e sacolas. A propriedade de quem dormia na rodoviária se resumia a isso. Com poucas pessoas acordadas, na sua maioria sob influência de alguma substância e sem condições de responder perguntas. Já a maioria, coberta até a cabeça, se protegendo pelos cantos das paredes, tentava nutrir um descanso.

De alguma forma, é perceptível que suas almas estavam em estado de sobrevivência. O risco coletivo trazia certa segurança. Parecia que dormir ali não era o suficiente, a vida, mesmo de olhos fechados, é incerta. Querer os direitos básicos e ter acesso a eles são frequentemente duas realidades incompatíveis nesse universo rodoviário noturno.

Na busca por aproximação das pessoas com seus direitos, Sérgio Rodrigo Ribeiro, 54, estava participando de uma ação com a Comunidade da Renovação Carismática Católica. Segundo ele, toda quinta ou sexta um grupo vai para a rodoviária realizar orações, cantar e distribuir marmitas. Nesse dia, estava presente o grupo de oração da cidade de Santa Maria

Ele comentou que a ideia é suprir também com o alimento físico. “No caso, hoje, com os caldos de frango desfiado e também trazemos agasalhos e roupas de frio, mais uma necessidade das pessoas que passam a noite na rodoviária”.

Sérgio não via o porquê de receber presentes, apenas dar. 

“Existem muitas pessoas de rua que estão necessitando de alguma coisa, alguns mais que outros. Ali todo mundo se sente abraçado [se referindo a ação da Igreja], acolhido, porque tem um alimento para sustentar pelo menos essa noite e agasalho para se proteger do frio.”

A vida após às 22h

“A violência também está muito evidente, existem conflitos ideológicos entre classes sociais e isso gera para quem não quer participar uma violência também, se torna vítima [nesse meio]. Ainda há uma cultura inflexível no que diz respeito às possibilidades do ser humano ter diversos meios para sobreviver. Sobreviver, viver e desenvolver economicamente, intelectualmente, familiarmente e socialmente.”, atestou Wesley Rocha.

A rodoviária notívaga é feita de pessoas que fazem essa cidade ser o que é. A poucos quilômetros da praça dos três poderes e a poucas horas do horário de pico, vidas se distinguem naquele encontro de eixos. É o lado B incógnito de um disco best-seller.  

Por Fabio Nakashima, Juliana Weizel, Otávio Mota e Pedro Santana

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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