Na porta da sala de aula, duas mensagens e o mesmo significado: “bienvenido” e
“Yakera nabakatotu” (na língua warao). Naquela manhã, a aula era de matemática.
Na sala improvisada, 50 alunos estão atentos às operações mostradas pela
professora na lousa branca com o pincel azul. Mas não é fácil somar tantas
memórias, subtrair a saudade, multiplicar esperança e dividir sonhos.
Os alunos refugiados indígenas da comunidade indígena venezuelana Warao
Coromoto estão na Escola Classe Café sem Troco, que fica no Núcleo Rural do
Paranoá (a cerca de 50 km do Centro de Brasília). Os indígenas decidiram seguir
para o Brasil depois de deixar a terra natal, há dois anos, por causa da crise
econômica e política. Eles relatam dificuldades extremas. Na nova sala de aula,
estão misturados adultos e crianças. Eles vivem na própria região em situação de
vulnerabilidade.
Essa é a história vivida, na verdade, por cerca de 500 alunos que frequentam a
Escola Classe Café sem Troco, sendo que 10% são da comunidade indígena. Todos
com o desejo de serem inseridos num ambiente seguro, de irmandade e de
recomeço. O acolhimento inicial foi realizado pela própria escola e depois com a
autorização da Secretaria de Educação.
Cada lição e atividade feitas nas carteiras buscam deixar para trás um passado
difícil. Eles consideram o novo ambiente agradável. Na escola, os novos alunos
vibram com as cores que são adornadas por desenhos que sopram esperanças de
novos aprendizados, dia após dia. Os desenhos lúdicos da infância com um
parquinho e um escorregador amarelo são vistos de longe, e, recepcionam quem
passa por ali todos os dias enquanto já se ouve o barulho das crianças brincando e
as tias da cozinha preparando o almoço.
O sonho
Para a comunidade Indígena Warao Coromoto, passar a frequentar a escola é uma
conquista. Eles atravessaram a fronteira e enfrentaram perigos. As aulas são
ministradas em espanhol, para transpor a barreira do idioma e unir as crianças em
entendimento, dando à elas segurança e confiança ao se expressarem na língua
local. Mas, aos poucos, o português também vai conquistando seu lugar na rotina
das crianças. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 2023, havia
31 famílias de indígenas venezuelanos que somavam 126 pessoas na região do
Café sem Troco.
A rotina escolar da “cafelândia”, como chamam, é marcada por um um ambiente de
inclusão e integração, onde os sonhos se encontram e se multiplicam. “Trabalhamos
com eles sobre sonhos”, diz a professora regente da turma Warao, Maria
Janerrandra, de 38 anos, que atua como professora há quatro anos. Quando
questionada se já ouviu algum dos alunos compartilharem seus sonhos, ela
responde:
“Ainda vejo que eles têm muito o que aprender nesse caminho. Porque,
antigamente, o sonho deles era simplesmente não passar fome”.
A chegada
Em meados de julho de 2022, a comunidade Warao chegou ao Café sem Troco, se
alocando em um terreno pago por ONGs, só que os problemas eram além de
acomodações. Os refugiados precisavam de ensino e educação que lhe foram
negligenciados no país de origem, a Venezuela. A liderança da comunidade rural
fez um pedido para a diretora da Escola Classe Café sem Troco, Sheyla Cristina
Alves Passos. “Nós temos um pessoal que são indígenas refugiados que estão
morando aqui no Café sem Troco, vamos lá conhecê-los”.
Ao conhecer os Warao, Sheyla se deparou com a hierarquia cultural. Ela só poderia
entrar no terreno com a presença do Cacique que não se encontrava. A diretora
então teve que retornar um outro dia.
Ao marcarem outra visita, Sheyla Passos foi acompanhada de Gilberto Portes de
Oliveira, 55 anos, administrador voluntário da comunidade Warao Coromoto. “Para
gente foi muito bom porque por mais que eles falam “portunhol”, está mais para
espanhol. Tinha toda aquela questão de dicção com eles. Então o Gilberto fez essa
interlocução”.
Gilberto desempenhou um papel fundamental nesse processo devido à sua
formação em técnico agrícola e uma experiência de mais de 25 anos trabalhando
com migrações, especialmente no campo pastoral. Ele é especialista em apoio a
imigrantes, refugiados e pessoas de diversas etnias, e realiza esse trabalho em toda
a América Latina.
A diretora relata que o primeiro “baque” que tiveram nesse processo foi por ter mais
de 100 pessoas sem nenhum tipo de acesso à educação. “Nenhum deles nunca
teve acesso”. A educadora confirma que nem no antigo país eles tiveram educação. “Por isso não quero comentar do outro país, mas não tinham”.
O vice-cacique Eduardo Vaz, mesmo com a barreira do idioma, conta que chegaram
em solo brasileiro em 2019.Vaz transmite a postura de durão, mas ao falar da terra natal franze o rosto com o ar de desgosto e tristeza.
“O país acabou todo. A crise econômica e a briga política acabou com tudo e por isso saímos da Venezuela”. Vice-Cacique Eduardo Vaz
O vice-cacique passa os dias com os “niños” na escola, auxilia como monitor e
ajuda na única sala dos Warao. Ele acredita que com a conquista de terem espaço na escola, futuramente, seus netos e as demais crianças terão uma vida melhor.
Sem política
Além do apoio e vontade da comunidade Café sem Troco e da diretora Sheyla
Passos, tiveram ainda apoio do Ministério Público e da Secretaria de Educação.
Mas outro “empurrãozinho” foi pelas eleições que estariam acontecendo naquele
mesmo ano, o que ajudou o processo a ser mais rápido para saberem se iriam
receber os imigrantes ou não.
A comunidade Warao é uma das maiores comunidades de refugiados venezuelanos
no Brasil. Aproximadamente 70% dessa comunidade já se estabeleceu no país. Os
Warao tornaram-se refugiados ao fugirem da Venezuela pelo contexto histórico e
social, mas também pela crise que se instalou no país.
Desde meados de 2013, a Venezuela arrasta-se em uma crise que piora a cada dia.
Atualmente, o país encontra-se em uma encruzilhada, enfrentando uma crise
política em razão da disputa entre Nicolás Maduro e seu partido, o Partido Socialista
Unido da Venezuela contra a oposição venezuelana, que denuncia os abusos de
poder cometidos pelo presidente. Além disso, existem a crise econômica, a crise
humanitária e ainda o risco de uma intervenção liderada pelos Estados Unidos.
Por conta disso, aproximadamente 125 mil imigrantes venezuelanos refugiados são
acolhidos no Brasil.
Ao chegarem, dispersaram-se por todo o território brasileiro em diversas regiões do
país em busca de segurança e melhores condições de vida. Após quatro meses
desde a chegada, foi convocada uma reunião com a Coordenação Regional de
Ensino do Distrito Federal e a Secretaria de Educação. Na ocasião a equipe da E.C.
Café sem Troco informou que não havia vagas disponíveis para receber os membros da comunidade, considerando que a escola é o polo do Café sem Troco e atende toda a região.
Foi sugerido então encaminhá-los para as escolas rurais da região. As escolas
seriam Jardim 2 ou PADEF, com garantia de transporte fornecido por um ônibus que
partiria da comunidade até a porta da escola. No entanto, a oferta foi recusada pelos
membros da comunidade, que mencionaram a distância entre a comunidade e as
escolas sugeridas como um obstáculo. Por outro lado, Sheyla Passos afirmou que o
principal motivo não foi apenas a distância, mas também o fato de que os membros
da comunidade já haviam estabelecido um vínculo de confiança com ela.
Ela acredita que, para os refugiados, essa questão de confiança é primordial, pois
muitos deles enfrentaram experiências traumáticas e têm medo e aversão ao
desconhecido devido ao sofrimento vivenciado.
“Acredito que a questão de ser refugiado é isso, eles têm muito medo e aversão porque eles passaram muito sofrimento, então eles têm muito medo”. Diretora Sheyla Passos.
A diretora ainda diz que evita falar de política por ser um dos traumas dos
refugiados e lembra de um gesto marcante feito pelo Cacique assim que o
conheceu.”Nunca vou esquecer a fala do cacique naquele dia: de política ó (sinal de
boca fechada) entendeu? São gestos que nunca vão sair da minha cabeça, então
esses assuntos a gente nunca comentou porque a gente sabe que eles têm um
trauma muito grande”.
A maior conquista da comunidadeOs pais foram informados de que iriam visitar a escola onde possivelmente seus
filhos estudariam, para que se sentissem mais tranquilos com a novidade. Ao
chegar na escola, ficaram surpresos ao observar a quadra e o prédio da escola.
“Sabe quando você leva uma criança em um parque de diversão e ela fica
maravilhada? Foi essa a visão que eles tiveram quando eles olharam essa escola
pela primeira vez. Parecia que eles estavam no céu”. A diretora reafirma o olhar de
deslumbre dos pais dos futuros alunos: “Foi uma coisa que eles nunca tiveram
acesso”.Desafios
Perguntamos para a diretora qual foi o maior desafio para inclusão dos refugiados
na escola. Sheyla Passos responde que existiram vários, mas um deles foi inseri-los
no sistema de matrículas da rede pública de ensino. “No site da Secretaria não
existia a opção de estrangeiros, então não conseguimos fazer a matrícula dos
Warao”.A Secretaria de Educação do Distrito Federal teve que desenvolver uma nova
medida para matricular crianças e adolescentes estrangeiros. Somente em 2023 foi
possível implementar uma solução para esse problema.Em nota, a Secretaria de Educação disse que os principais desafios enfrentados
pela pasta “incluem a implementação de políticas públicas que atendam à inclusão
desses estudantes migrantes internacionais e indígenas nas diferentes etapas e
modalidades”. E afirma que estão sendo feitas adequações inéditas,”que vão desde
a alimentação e suporte por meio de educadores voluntários”. Confirmam ainda que
houve uma alteração no sistema para que os Waraos pudessem ser matriculados.“Até alterações em documentos como a Estratégia de Matrícula, para melhor
atendê-los na rede. A SEEDF já possui uma Portaria que em breve instituirá a
política pública de acolhimento a falantes de outras línguas, que já somam um total
de 547 indígenas e 1679 migrantes atualmente”, informou a secretaria.Ainda na sala de aula, a professora regente da turma Warao encara um desafio
maior que o idioma: alcançar todos um único objetivo, com alunos de faixas etárias
diferentes. “Nós temos crianças de seis a 18 anos e é um desafio. Porque a
metodologia usada não pode ser a mesma, eu não posso alfabetizar uma criança de
seis anos igual alfabetizar uma de 18. Então assim, a gente tem que ter um jogo de
cintura e usar o mesmo texto”.Além da alfabetização, entre uma aula e outra, a hora do recreio é a mais esperada.
Os alunos Warao vão até a cantina se deliciar com o prato do dia: estrogonofe e de
sobremesa, uma fruta. Todos se reúnem nas mesas ao ar livre e conversam no
idioma de origem.Ao finalizar a refeição, algumas crianças da comunidade indigena pegam comida
para suas famílias. Em sacos plásticos guardam a refeição, felizes em levar para
casa o alimento. E retornam para a sala. Durante as aulas no Café sem Troco, os
cadernos trazem anotações diversas, lembranças do que é necessário estudar.
Agora a aula é de geografia. No mapa desenhado na lousa, estão mais do que
contornos de limites e fronteiras ou representações de rios e relevos. Depois vem a
aula de português, e os alunos experimentam na prática significados de palavras
maiores, como saudade e recomeço.