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Brasília

O super-herói que é gente como a gente

A vida nada doce de quem encara o veneno da labuta no dia a dia do trabalho em semáforos na capital da República

Gustavo Mariani

17/07/2022 5h08

Atualizada 15/07/2022 19h23

“Onde tem doce, tem criança; onde tem criança, tem doce”.

As frases repetitivas, com objeto direto, são de um sujeito que só estudou até o segundo grau, mas se doutorou pelo observatório do mundo. O autor, que sacou o que você leu no primeiro parágrafo, vive dentro do mundo que o quadrinhista norte-americano Stan Lee criou, pelos inícios da década de 1960, quando estava diante de uma parede, viu uma mosca subindo-a e imaginou um super-herói fazendo o mesmo,

O artista não convenceu os seus chefes da viabilidade de lançar novo super-herói na praça e só o emplacou na última edição – N? 15 – da revista Amazing Fantasy, em fevereiro de 1962, quando moradores da novaiorquina Manhattan adoraram ver o Homem-Aranha protegendo os seus vizinhos contra bandidos alarmantes.

Aqui em Brasília, 50 anos depois, o desempregado Natanael Roberto Gomes de Oliveira decidiu vestir-se de Papai Noel e vender bugigangas pelas ruas, pelo final do último clima natalino. Procurou um ponto onde não entrasse em conflito com outros vendedores e escolheu a curva que liga a W3 Norte ao Setor Hospitalar. Quando a fase passou, fez novas pesquisas e constatou que o Homem-Aranha assanhava os “baixinhos”. Comprou a fantasia, testou-a pelos três semáforos do local e “armou a sua teia” por ali.

Aranha é um bicho que ninguém gosta, disseram os editores de Stan Lee, quando foram apresentados ao personagem.

O Homem-Aranha é um super-herói muito querido pelas crianças de Brasília, afirma Natan, exemplificando que, recentemente, uma senhora pediu para filmá-lo e mostrar a um filho que estava internado em um hospital. Depois, voltou e lhe disse que o garoto o havia adorado e não parava de falar no que assistira (pelo celular).

Natan, como é chamado, nunca leu gibis do Homem-Aranha, “porque não tinha dinheiro para comprá-los”, afirma. Desde os 13 de idade, vendia balinhas doces, chicletes, dentro de ônibus, para ajudar os pais – Tião e Maria – nas despesas de casa. “Depois, vendi copinhos de chá, água, latinhas com refrigerantes, essas coisas, pelas ruas de Ceilândia (onde ainda reside). Por aquele meu tempo de adolescente, o único supe-heroi que curti foi o Dragon Ball” – criação japonesa, de Akira Toriyama, na revista Weekly Shonen Jump, circulado entre 1984 a 1995 e que teve 519 capítulos compilados em 42 volumes publicados pela editora Shueisha.

Se não lera os gibis do Homem-Aranha, era necessário Natan assistir filmes estrelados pelo super-herói, para vivê-lo pelas ruas de Brasília. “Eu nunca tive tempo e nem dinheiro pra ir ao cinema”, conta ele que, só recentemente, conseguiu “guardar um troquinho” e ir, com a esposa, estudar o seu personagem na telona. Mas não entendeu nada do filme – Homem-Aranha sem volta pra casa, de 2021. “Senti que precisava ter assistido os anteriores pra dominar a ação. Fiquei voando”, contou ele, que perdeu as nove películas anteriores, lançadas a partir der 2002. Quando nada, daquela sessão de cinema ficou-lhe na memória uma frase pronunciada por um dos personagens: “Diferente é o que se cria”.

Natan cria. Quer dizer: já criava, pois as figurinhas com desenhos de crianças em cenas engraçadas que ele negociava com uma gráfica deixarão de acompanhar os seus saquinhos de doces de amendoim, pois o “preço subiu muito e a Evelyn (sua mulher) está desempregada, não podendo me ajudar nas despesas”.

Aos 26 de idade, casado há quatro viradas de calendário, Natan ainda não tem filhos. Por isso, diz que os R$ 2 a 3 mil reais mensais que o Homem–Aranha coloca em seu bolso vão dando pra ele e Evelyn se virarem.

Diariamente, acorda às cinco da matina e chega à Asa Norte entre as 7h30 e as 8h, vestido com bermuda e camiseta. A seguir, coloca a fantasia debaixo de uma das árvores dos gramados e estende uma placa anunciando o telefone de um contador. “Estou dando uma força para um amigo meu”, revela. Depois, tira o material de vendas de dentro de uma carrocinha e vai à luta. “Eu a deixo (a carrocinha), todos os dias, perto do hospital. Sou amigo da rapaziada, que a olha para mim – há um ponto de taxi funcionando por 24 horas diante do Santa Lúcia.

Quando vai pra casa, entre 13 e 14h, Natan passa por um supermercado de Ceilândia, para trocar moedas com os caixas, “que precisam de troco”. Isso lhe vale desconto na compra de produtos para as suas vendas e, de vez em quando, o gerente lhe oferece um sorvete, por cortesia.

Próximo passo: Natan caminha até a sua quadra ceilandense certo de que aquele dia de trabalho nas ruas lhe exigiu “muito veneno para driblar o movimento dos carros e das sinaleiras” – um Homem-Aranha de vida nada doce, não! Pelo menos, na Asa Norte.

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