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Brasília

Jovens com autismo explicam carreiras profissionais e como se veem representados pelas artes

No Brasil, a comunidade envolvida com a causa do autismo segue unida com uma campanha nacional: “Respeito para todo o espectro”

Agência UniCeub

30/03/2021 18h54

Louise Velloso e Mário Santa Rosa / Agência UniCEUB

Desde 2007, o dia 2 de abril é o dia de conscientização do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), criado pela Organização das Nações Unidas (ONU). A data tem como objetivo conscientizar as pessoas sobre a importância da inclusão de indivíduos com TEA e o combate às desigualdades e a discriminação. No Brasil, a comunidade envolvida com a causa do autismo segue unida com o tema da campanha nacional sendo: “Respeito para todo o espectro”, utilizando a hashtag #RESPECTRO nas redes sociais.

O diagnóstico do autismo

O Transtorno do Espectro do Autismo é classificado pelo DSM-V como um transtorno de neurodesenvolvimento crônico. Sendo as principais características a dificuldade com linguagem, interações sociais e comportamento repetitivo e restritivo. Não se sabe com precisão o número de pessoas com TEA no Brasil, porém de acordo com uma estimativa feita pela OMS (Organização Mundial da Saúde), se acredita que existam mais de 2 milhões de cidadãos brasileiros no espectro.

A psicóloga Maria Izabel Tafuri, de 65 anos, professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB), explica que o diagnóstico tende a acontecer antes dos três primeiros anos de vida sendo que o principal sinal para os pais é o atraso na comunicação verbal.

Para a terapeuta, esse atraso pode ser percebido antes mesmo do desenvolvimento da fala através da falta de contato visual, a criança não apontar para objetos que quer e/ou até mesmo ausência da angústia de separação. Essa angústia seria caracterizada como a resposta de estranhamento quando chega uma pessoa que a criança não conhece, e ela se recolhe no colo da pessoa que ela tem mais contato. “Essa resposta de estranhamento é importante para o desenvolvimento da fala, mas muitas vezes passa despercebido até mesmo pelos pediatras”, afirma a especialista.

Representações do autismo na arte

O diagnóstico que geralmente acontece na infância permite que a criança passe por um tratamento, preferencialmente interdisciplinar, para que a inclusão no meio escolar e social seja mais fácil. Nos últimos anos, o transtorno é cada vez mais discutido na mídia tanto em séries e filmes quanto em jornais. Só no ano de 2017, duas séries americanas foram lançadas com personagens principais estando dentro do espectro do autismo. Sendo elas a séries Atypical produzida pelo Netflix e The Good Doctor, disponível no Globoplay. A televisão brasileira não ficou para trás, na vigésima quinta temporada, a telenovela “Malhação” contou com a personagem Benê (Daphne Bozaski) como uma das personagens principais da trama.

O aumento da representação na mídia do transtorno do autismo fez com que um número maior de adultos e adolescentes viessem a procurar o diagnóstico. “De uns 5 anos para cá aumentou significativamente o número de adolescentes e adultos que vêm nos procurando para relatar as dificuldades deles  e  saber se é por conta de TEA ou não”, comenta a Izabel. Porém, a médica indica que ainda é mais comum que o diagnóstico aconteça na primeira infância.

“Nada sobre nós sem nós”

Para falar sobre a representatividade do transtorno do espectro do autismo, conversamos com quatro pessoas que estão no espectro. Eles utilizam de suas vozes para falar sobre a experiência de ter TEA e suas opiniões sobre as séries e filmes que tratam do assunto.

Fonte: Arquivo Pessoal

Polyana Sá, de 20 anos, estudante de engenharia de bioprocessos e biotecnologia, recebeu o diagnóstico aos 16 anos de idade, depois de procurar auxílio psiquiátrico por conta de um caso grave de depressão. Durante o acompanhamento, ela acabou por receber seu diagnóstico de TEA.

“Eu me senti aliviada por descobrir que não era a única que se sentia dessa maneira e de que certa forma não estava sozinha”, comenta.

Desde julho de 2020, a estudante cria conteúdo sobre estar no espectro e representação na sua página (@Heyautista) para informar e criar discussões sobre o assunto.

Para Polyana, existe uma diferença entre o que é representação e o que é representatividade. Enquanto existem um maior número de produções que contam com personagens autistas, os colocando como pessoas ao invés de aberrações, mas por trás das câmeras isso não parece ser feito.

A jovem explica que acredita que muito ainda precisa ser feito para atingir a representatividade, pois “as pessoas se preocupam em fazer uma série ou um filme sobre o autismo, mas não tem consciência de chamar pessoas autistas (que tem o lugar de fala na situação) para a equipe de produção e/ou como atores”.

Quanto as representações que são mais realistas quanto a estar no espectro, a estudante aponta a série/reality-show produzido pela Netflix, “Amor no Espectro”. A série australiana acompanha relacionamentos amorosos entre pessoas com autismo, e mostra pessoas no espectro com diferentes realidades , personalidades e níveis de suporte. Polyana comenta como essa é uma ótima maneira de representar pessoas com TEA, “porque mostra quão amplos nós somos dentro do espectro autista e acima de tudo, que nós somos seres humanos como qualquer outra pessoa”.

Lucas Pontes, de 23 anos, foi diagnosticado com TEA aos 20 anos de idade depois de passar por diversos médicos ao longo dos anos. A sua terapeuta então o incentivou a criar uma página no Instagram (@lucas_atipico) para compartilhar seus desenhos e músicas com as pessoas. Depois de um tempo o estudante de Psicologia decidiu começar a criar e postar conteúdos sobre autismo através de vídeos, textos e memes.

Fonte: Arquivo Pessoal

“Fui percebendo o quanto a fala dos autistas é invalidada e como a sociedade, e as próprias pessoas ligadas ao autismo, o encarram como um erro a ser corrigido”, diz Lucas.

O jovem então se tornou um ativista não só pelo autismo, mas também pela neurodiversidade.

De acordo com Lucas, a representatividade quanto ao espectro do autismo ainda é insuficiente e as histórias tendem a seguir estereótipos.

Mesmo que alguns programas tenham começado a ouvir pessoas autistas para melhor representar os personagens e suas experiências, ainda há um problema de uma única narrativa. Muitas vezes, a mídia representa o autismo através de uma pessoa do sexo masculino, cisgênero e branco.

“Isso é um problema, pois reforça o equívoco de que mulheres autistas são raridades e anula uma grande parcela da população autista que é LGBTQIA+”, explica Lucas.

Mas a representação não é simplória, especialmente nos últimos anos e em comparação com as anteriores. Filmes como Rain Man (1988), “possuem uma forma de tratar o autismo que visa mostrar os quão diferentes/esquisitos nós somos e não em fazer com que o autista seja visto como qualquer outra pessoa, apesar, é claro, das nossas diferenças”, comenta o estudante.

As representações atuais passaram a tratar o personagem no espectro como uma pessoa que vai além do diagnóstico e não tendem a se prender tanto aos estereótipos. Um dos motivos para isso acontecer, na opinião de Lucas, é a inclusão de atores com TEA para interpretarem os personagens e consultoria quanto a produção, como o que acontece em séries como Atypical e Everything’s Gonna Be Okay.

Fonte: Arquivo Pessoal

Paulo Alarcón, de 29 anos, recebeu o diagnóstico em 2018, e no início não foi algo fácil de aceitar. Tanto para ele quanto para a família que não compreendiam o transtorno. “Comecei a pesquisar mais a fundo e tudo começou a fazer sentido. Hoje aceito muito bem a questão de ser autista e sinto que isso é parte de quem eu sou”, diz o jovem.

Formado em automação industrial e robótica pela UNIP (Universidade Paulista), com Mestrado em Computação Aplicada pelo INEP (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Paulo trabalha como Analista de Sistemas. E foi esse um dos motivos que começou a participar do podcast “Introvertendo”, o primeiro podcast no Brasil feito por pessoas no espectro para falar sobre TEA.

Alarcón conhecia o projeto desde seu primeiro episódio sobre “Diagnóstico de Síndrome de Asperger” e se identificou imediatamente com a mensagem e a proposta do podcast. Após enviar um e-mail falando sobre a sua experiência, foi chamado para um episódio sobre “autistas no mercado de trabalho” e veio a participar de mais dois episódios antes de ser chamado para fazer parte da equipe no final de 2018.

Para Paulo, a representação na mídia sobre do autismo afeta tanto as pessoas no espectro quanto as pessoas ao redor. Para alguém que nunca teve contato ou não sabe o que o transtorno, a mídia pode ser seu primeiro contato. A mãe de Paulo por exemplo teve seu primeiro e por muito tempo único contato através do filme Rain Man, de 1988.

“Naquele tempo, ela via (o autismo) ou como uma pessoa que não consegue fazer nada sem ajuda e fica balançando para frente e para trás ou como um super gênio”, comenta Paulo.

Essa dicotomia causa muitos problemas na visão do analista, pois existe uma diversidade muito maior quando estamos tratando do espectro do autismo. De um lado temos uma representação do autista como um incômodo, essa é uma visão muito comum quando se trata de personagens com um caso mais severo de TEA.

“Temos muitas dificuldades em coisas que para a maioria das pessoas são simples, mas sempre podemos aprender com a orientação e linguagem correta. Perceber que você só traz despesas para alguém pode ser bastante maléfico”, explica Paulo.

Por outro lado, a imagem de uma pessoa no espectro como um gênio também não é ideal. Enquanto o jovem Paulo aprecia ver autistas excepcionais como Dr. Shaun, de The Good Doctor, essa visão de pessoas terem quase que superpoderes por terem TEA é bastante prejudicial e equivocada.

De acordo com Alarcón, “é uma minoria de autistas que nascem com altas habilidades, mas isso não significa que a maioria não consiga se destacar. Acredito ser possível deixar um bom legado sem ser alguém excepcional, com bastante esforço e dedicação”.

Foi por conta de novas representações em séries e filmes que a hipótese de TEA surgiu na vida de Paulo. O rapaz explica que “como não tinham referências, para minha família, eu era só um menino peculiar”.

Através de personagens como Sheldon, de The Big Bang Theory e Sam, de Atypical que Paulo começou a se identificar com o diagnóstico de autismo, principalmente com Sam. Durante os anos escolares, ainda sem o diagnóstico, a vida de Paulo se assemelhava bastante com a do personagem.

“Eu era isolado, tinha apenas um amigo e sofria bullying na escola. Também passei por um período em que queria arrumar uma namorada, mas foi bem complicado”, comenta ele.

Fonte: Arquivo Pessoal

Tháis Mosken, de 29 anos, é formada em engenharia civil e trabalha como administradora de sistemas. A jovem recebeu seu diagnóstico em 2018, aos 26 anos de idade, e apreciou conseguir entender o porquê de certas coisas serem diferentes para ela. Foi um alívio compreender as causas de problemas que antes eram um mistério.

“Além de ser mais fácil buscar estratégias de como lidar com eles ao analisar como outras pessoas fazem isso”, comenta.

Tháis também é uma das integrantes do podcast “Introvertendo”, como o Paulo Alarcón e começou a participar no mesmo episódio sobre autistas no mercado de trabalho. Ambos mandaram e-mails, gravaram episódios e logo após se tornaram membros da equipe.

Para a jovem não existe nenhum personagem em séries e filmes com que ela se identifique, mas por ter maior facilidade com textos escritos que sejam objetivos e claros.

Foi no jogo de cartas Magic: The Gathering através da personagem Narset, que ela achou uma pessoa que representasse suas dificuldades. Tháis veio a se identificar com Narset por conta de questões como: ficar sem energia em certas situações, tomar decisões racionais que muitas vezes são consideradas pouco educadas e levar muito a sério o que as pessoas dizem.

A jovem explica que a personagem “só tem algumas características estranhas ou poucas habilidades sociais, sem que em algum momento isso seja entendido de fato, e só com a confirmação dos criadores da história dela é que se tem certeza de que ela é neurodiversa” e essa é uma situação muito comum entre as mulheres autistas que conhece.

Em um dos últimos episódios lançados do podcast, a jovem e duas outras participantes tiveram uma discussão sobre o assunto de representatividade na mídia. Mesmo não se conectando tanto com o meio audiovisual, para Tháis achar uma representação que ela se identifique é difícil.

Isso se dá pelo fato de que as experiências e personalidade das pessoas no espectro são bastante variadas. As produções mais antigas tendem a mostrar apenas um estereótipo de autistas, na sua visão: homens brancos com quadros moderados ou severos, em extremos de déficit cognitivo ou uma genialidade associada a uma capacidade social quase nula.

E mesmo que o cenário pareça estar mudando, a estudante observa que “ainda serão necessárias muitas produções que apresentem essa diversidade para que o estereótipo seja alterado no imaginário popular”. Uma das maneiras que isso poderia ser melhorado, na sua opinião, é que essas mídias deixassem claro que estas são apenas algumas das características que um autista pode ter e que existe uma variedade de jeitos de estar no espectro.

Inclusão e socialização

Sancionada em 2012, a Lei 12.764, mais conhecida como Lei Berenice Piana, estabelece os direitos de pessoas com TEA de acesso à educação, tratamentos e medicamentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), assim como acesso à educação e ao trabalho. Apesar disso, segundo dados do IBGE, 85% dos brasileiros com TEA estão fora do mercado de trabalho, mostrando a dificuldade que existe na inclusão de pessoas do espectro.

ONGs e organizações como a Specialisterne, de origem dinamarquesa, tem como função preparar jovens autistas para o mercado de trabalho, ainda assim se vê como necessário uma inclusão e acessibilidade para essas pessoas já na infância. O professor e psicopedagogo Mário César da Silva de Castro, de 49 anos, comenta que “a falta de informação acerca do autismo constitui um dos principais problemas para a inclusão dessas pessoas na sociedade”.

Ele ainda complementa que “existem poucos avanços na área científica, pouco se sabe sobre essa doença, o que acarreta uma alienação sobre o assunto”, e afirma que o tratamento precoce e contínuo é essencial para a melhora de qualidade de vida de uma pessoa dentro do espectro. “Se ele passar por um diagnóstico correto, se fizer uma intervenção corretamente, quando criança, com os profissionais, ele conseguirá sim ter uma vida saudável, uma vida melhor”, explica o professor.

Em 2019, o Censo da Educação Superior estimou cerca de 1500 alunos autistas matriculados nas universidades. Também segundo dados do Censo Escolar 2020, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) houve um aumento no número de matrículas da educação especial em cerca de 1,3 milhão, sendo um aumento de 34,7% em relação a 2016. Segundo ainda o censo o percentual de alunos no espectro matriculados em classes comuns tem aumentado gradualmente para todas as etapas de ensino.

De acordo com a psicopedagoga Eliane Castro, de  45 anos, é necessário formar profissionais que possam administrar a situação de uma forma menos danosa, sendo que só com estudos e esclarecimentos é possível começar a inclusão de pessoas no espectro, “essa inclusão não se dá com benefícios ou favorecimentos, mas respeitando sim, seus direitos”, comenta a psicopedagoga.

Ela acrescenta que “promover ações na escola onde todos possam participar, sem exceções, alunos, professores e demais servidores, pois todos fazem parte da comunidade escolar e devem estar aptos para auxiliar no que for necessário, dentro de suas atribuições”.

A  inclusão se apresenta também na grande mídia como corrobora Mário. “A mídia tem um papel fundamental para melhorarmos tanto a vida de um autista quanto a divulgação das informações corretas sobre esse transtorno”.

Ele aponta que ao trazer estes levantamentos ocorre uma desmistificação do medo e do desconhecido sendo que “tal efeito é percebido não apenas pelos que leem e assistem narrativas, mas principalmente pelos familiares dos autistas”, explica o psicopedagogo.

Contudo, Eliane afirma que a participação de pessoas no espectro autista é praticamente zero. O que se tem  são filmes e seriados que fazem essas representações, mesmo assim ela conclui que “a representação desde que feita da forma correta, facilita e muito. Quanto mais informações, mais benefícios, mais inclusão.”

Se tiver interesse em algumas das séries mencionadas, assista os trailers abaixo:


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