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Fazer ensino superior rejuvenesce, garantem alunos de mais de 50; especialista diz que é preciso combater idadismo

Estudar sempre foi um sonho para o motorista Flávio da Silva. Mas as condições de vida de quando era jovem não foram favoráveis

Redação Jornal de Brasília

23/06/2023 17h26

Vitória Arnold, de 59, chegou a ouvir que seria “velha demais” para cursar o ensino superior. Foto: Arquivo pessoal 

Por Ana Clara Neves, Milena Dias e Nathália Maciel

Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB

Estudar sempre foi um sonho para o motorista Flávio da Silva. Mas as condições de vida de quando era jovem não foram favoráveis. Entretanto, hoje, com 52 anos, ele conseguiu entrar no tão almejado curso de direito. “Estudar me fez acreditar em muitos sonhos. Como advogar numa loja, ter o próprio escritório, fazer alguns concursos e conseguir alcançar aquela meta que na juventude sempre eu tentei e não tive oportunidade”.

De acordo com a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), no Distrito Federal,  28.578 pessoas com 40 anos ou mais ingressaram na educação superior em 2021. Porém, o preconceito relacionado à idade é um dos motivos que fazem com que pessoas mais velhas desistam do sonho de estar no ensino superior.

Segundo o Censo da Educação Superior de 2021, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), cerca de 42 pessoas, com idade a partir de 50 anos, frequentam as Universidades Públicas do Distrito Federal. Já nas Universidades privadas, cursam cerca de 1.215 pessoas, a partir de 50 anos.

Idadismo

A atual aluna de direito Vitória Arnold, 59, afirma que em seu primeiro dia de aula foi questionada por outros alunos se era professora. Ao dizer que era  aluna, a mulher recebeu risadas com tons de sarcasmo por conta de sua idade.

“No meu caso eu só fui fazer direito depois dos meus 50 anos, e eu não tive oportunidade na minha vida antes e quando eu tive, acabei jogando fora”.

Segundo o médico gerontólogo Alexandre Kalache, que é especializado no estudo do envelhecimento, todos estarão sujeitos a essa situação um dia, o que ele chama de idadismo.

“Ninguém escapa do idadismo. Basta você estar vivo e envelhecer que você é uma vítima potencial do preconceito contra a idade”.

Kalache é presidente do Centro Internacional da Longevidade (International Longevity Centre, ILC Brazil) e co-diretor do Age Friendly Institute, baseado em Boston (Estados Unidos).

Vitória Arnold, depois que ouviu de outra pessoa que era ‘velha demais’ para fazer faculdade, decidiu então tornar essa palavra uma fonte de força para correr atrás do seu sonho. Pouco tempo depois, ela fez o Enem e passou com bolsa parcial no curso de direito.

Hoje ela afirma que tem como principal objetivo passar em concurso e se tornar delegada. Apesar disso, ela reconhece que as universidades não estão preparadas para receber pessoas com a idade avançada. 

“Todo mundo pode ser vítima de um “ismo”.E as universidades não estão preparadas. Existe idadismo em relação aos professores, existem piadinhas, exclusão, o jovem fazendo chacota, não há respeito, porque tem ali ou um professor que eles julgam velho, ou um colega”, afirma Kalache.

Relações e convivência 

Kalache destaca que as universidades precisam desenvolver currículos e práticas em que exista uma harmonia e uma relação de trocas intergeracional.

“A presença de uma pessoa idosa no meio ambiente, seja de trabalho, seja de educação, seja de ensino, seja de diversão, acrescenta para todos”.

Além disso, é de grande importância pensar em ter políticas expostas, que sejam postas em práticas para que casos de julgamentos e situações indesejáveis não ocorram.

“Você só combate algum tipo de idadismo, racismo, sexismo, LGBTismo se você educar, educar e preparar, sem dar espaço para esses preconceitos”. 

O médico Alexandre Kalache considera importante esses relacionamentos, principalmente considerando que nessa idade as relações sociais são reduzidas.

“Tem que compensar isso trazendo a presença do idoso para que ele possa ter a oportunidade de conhecer gente jovem. Tem que ter oportunidade de reconhecer gente mais velha porque é bom pra ela”. 

Novas linguagens

A professora Zilta Díaz, atualmente tem 67 anos, rompeu barreiras quando resolveu cursar jornalismo. Ela começou a faculdade quando tinha 59 e relata que a convivência sempre foi muito boa, principalmente depois do primeiro trabalho em grupo.

Mas ela confessa que precisou se atualizar quanto às linguagens dos amigos e, inclusive, pediu ajuda para os netos.

Zilta, ao lado de colegas, está na fileira de trás, ao centro. Foto: Arquivo Pessoal 

“Sem desconforto”

A jornalista diz que já recebeu alguns olhares diferentes por estar no meio de pessoas mais jovens, mas nunca se sentiu desconfortável.

Na verdade, ela gostou muito da experiência e considera que essa “mistura” é muito legal e importante. Além disso, o ensino superior, mesmo estando mais velha, ainda lhe trouxe oportunidade de estágio e intercâmbio para Portugal. 

Ao final do curso, Zilta fez amizade com Cláudia (na primeira fileira, na foto acima), da mesma idade.

“Os docentes davam muita ênfase à experiência que tínhamos e mostravam muito respeito e consideração pelo fato de estarmos nos esforçando para a conclusão de um curso no qual tínhamos que introjetar uma formação completamente nova”. 

Esse também é o caso de José Magela, de 66 anos, que também cursa direito. “As relações interpessoais são importantes no mundo acadêmico, seja em que idade for. Onde você formar novas amizades, onde você dá continuidade a essas amizades de uma forma ou de outra. E uma pessoa na minha idade, com 66 anos, tem mais essa condição de poder conviver com pessoas que não estão na sua faixa etária”.

José Magela faz direito e termina o curso ano que vem aos 66 anos. Foto: Milena Dias

Entretanto, mesmo com essas dificuldades o doutor destaca benefícios. Para ele, a presença de pessoas idosas na educação e no ensino acrescenta para todos, havendo um processo de troca.

A turma de Flávio Pedro é um exemplo. Ele conta que são um grande grupo de amigos com idades diferentes, desde jovens aos mais velhos. Essa relação o motiva ainda mais a continuar. 

Flávio Pedro da Silva afirma que a universidade tem sido um lugar de muitos aprendizado. Foto: Milena Dias

Usando como referência, Kalache usa a citação de A Angela Y. Davis, que é a grande ativista contra o racismo nos Estados Unidos, para combater o idadismo.

“Ela afirmou uma coisa que eu achei fantástica: ‘Não basta não ser racista, você tem que ser antirracista’.  E o mesmo se aplica ao idadismo”. Logo, não basta não ser idadista, há a necessidade de ser anti-idadista, combatendo de forma ativa as piadinhas, as anedotas e a exclusão.

“Isso tudo é uma forma de exclusão e cabe às autoridades, não é só em uma universidade, é num trabalho, no dia a dia, dentro da própria família, dentro da sociedade onde você frequenta”, diz o gerontólogo Alexandre Kalache  

Desejos e motivações

Almir Mendes tem 51 anos, é coach, militar do exército e cursa direito. O estudante conta que sua rotina é muito corrida, sem tempo para descanso. Isso porque ele cuida da família, trabalha e estuda. Mas desistir não é uma opção. Ao longo da vida foi percebendo o desejo pelo direito e hoje está no 4º semestre.  

Almir tem 51 anos e está no 4º semestre do curso de direito. Foto: Milena Dias

“Eu iniciei em segurança pública e privada. Quando faltavam quatro meses pra terminar, eu fiz essa imersão interior e olhei pra frente pra o que eu poderia fazer com esse curso. E me vi preso de novo. Não era o que eu queria. E o direito ele dá essa liberdade”. 

A convivência com idades diferentes é muito importante pra ele. Considera que essa interação proporciona grande aprendizado,  já que todos, independente da faixa-etária, estão na universidade para aprender.

“Quando você tá dentro de uma sala de aula não existe essas coisas de idade, é aluno. O nome é aluno. Aluno com objetivo”. 

Ele pode ver benefícios além dos sociais e psicológicos. Sua vontade serviu de incentivo para a família. Segundo ele, dar esse passo fez sua filha gostar mais de estudar, além de fazer sua esposa voltar a estudar. 

Estuda sem parar

José Magela conta que não passa mais de dois anos sem fazer um curso formal, pois esse é o método que encontrou para não ficar parado.

E foi quando o diretor de sua faculdade o convidou para fazer parte do docente que decidiu fazer a faculdade de direito, pois não tinha o diploma necessário para o currículo. Mas apesar da idade, conta que gosta de conviver com a ‘meninada’.

“É uma alegria conviver com essa juventude. Rejuvenesce, aprende um pouco mais e a vida segue”, diz. 

Sendo o representante de turma, José afirma uma relação de amizade com seus colegas de classe, que o chamam de “vovô”, e se beneficiam de muitas trocas de informações e ideias.

Admiração

Assim como destaca a forma em que começa a se tornar um referencial para os jovens que o veem com admiração.

“Tenho bacharelado em teologia, licenciatura em filosofia e gestão, pós graduação em ética e filosofia política, pós-graduação em história e filosofia e mestrado em psicopatologia inconcluso. Mas também tenho cabelos grisalhos, já quase todos embranquecidos e a experiência de vida. E isso é o que importa também.”

Flávio sente, depois de uma juventude difícil e sem oportunidades, que é motivação para os colegas de sua idade que não têm coragem de começar um curso por se sentirem “velhos demais”. “As pessoas ficam admiradas e com vontade de tomar essa iniciativa, dar o primeiro passo.  Tudo é questão de querer e vontade de realizar os sonhos”. 

Tabus 

Assim como diz Alexandre Kalache, o idadismo tem sido pouco comentado pela sociedade em razão de ter se transformado em um tabu, inclusive dentro das próprias casas com idosos.

“As famílias se incomodam. A maior parte dos casos de vítimas do idadismo, de violência, de negligência, de abandono, de abuso financeiro, emocional ou físico, é dentro de casa”, diz. 

“Porque você espera ter que receber confiança da sua sociedade, da sua família, dos seus pais. Quando há quebra dessa confiança você está sendo vítima do idadismo”. 

Com 68 anos, Vitória já passou por várias situações relacionadas ao idadismo. Na própria sala de aula, no campus ou até no ônibus. Foram risadas, comentários e olhares, mas nada a abalou. Hoje ela garante que vai realizar o sonho de ser delegada mesmo com tantos tabus.

“Eu não vejo que para estudar precisa ter um limite. Se você tem 40. 50 ou 60 anos, não existe um limite. Eu me sinto nova, me sinto jovem e sou capaz de concorrer com qualquer idade, mais velha ou mais nova”.  

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