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Brasília

Família espera indenização da Terracap há quatro gerações

Indefinição de valores é a causa para a demora do ressarcimento por desapropriação indireta, em 1957, de 24 lotes em Brasília

Vítor Mendonça

08/07/2022 5h46

A Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) ainda não arcou com a indenização da desapropriação indireta de 24 lotes no centro de Brasília, feita há 65 anos para a construção da nova capital. Em 18 de fevereiro de 1957, o órgão, à época braço da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), tomou o total de 12 mil metros quadrados de Álvaro Ribeiro Saramago na região que atualmente compreende loteamento entre as quadras 767 e 1095 do Setor Militar Urbano até parte do Cruzeiro Velho e além da antiga Rodoferroviária, ao fim da via N1.

Como consequência da desapropriação, a família de Álvaro tem direito a receber uma indenização dos terrenos, compensando a tomada dos lotes. Em 1975, o falecido avô da carioca Rachel Oliveira, de 35 anos, reuniu todos os documentos necessários para comprovar o direito ao ressarcimento e, em junho de 1983, a causa foi ganha no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).

Entretanto, já são quatro gerações da família sem receber a indenização pelos terrenos. Já faleceram os bisavós, os avós e a mãe de Rachel sem o dinheiro do “processo de Brasília”, como costumavam chamar a ação nas reuniões familiares. A causa da demora é a inconclusão sobre o valor dos terrenos, que já passaram por três perícias para esclarecer sobre a quantia justa a ser recebida, com juros de mora – compensação por atraso – e correção monetária.

Na última, feita em agosto de 2014, os técnicos afirmaram que o terreno vale apenas R$ 67.289,21. “A gente entra em um processo para receber uma indenização de um terreno que vale milhões, em que se apropriaram indevidamente, e no final, se for esse valor, sairemos devendo o processo [devido aos gastos da família com a perícia para conseguir a indenização]”.

“Tem que rir para não chorar, né. […]”, ironizou Rachel. De acordo com ela, todos os entes já falecidos sonharam e fizeram planos com a quantia à qual têm direito, mas que não receberam. “Meu avô fez planos, minha mãe fez planos, minha tia, todo mundo. Eu não faço porque eu vi todo mundo morrer sem receber. Não perdi as esperanças totalmente porque é um direito nosso, mas é um dinheiro que eu não conto para nada na minha vida. Eu não faço planos [com a quantia] justamente para não me frustrar como meus familiares se frustraram.”

Pobreza

Encabeçado por Juscelino Kubitschek entre 1955 e 1960, o processo de transferência da capital do Rio de Janeiro para a atual Brasília mudou muita coisa no país como um todo. Muitos se deslocaram do litoral para o centro do Brasil, acompanhando a mudança e conseguindo prosperar na nova cidade, sendo a esperança de muitas famílias. Na de Rachel, porém, a transição seguiu no caminho contrário e, a cada ano, passou a significar desesperança de um futuro melhor.

Os avós, segundo Rachel, tiveram um estilo de vida razoavelmente bom, uma vez que ambos foram serventuários da Justiça. Para Rachel, o irmão mais velho e a mãe, no entanto, a vida foi mais difícil. Em 1993, após o divórcio da matriarca, eles saíram do Rio de Janeiro para tentar uma vida melhor em Minas Gerais. No estado vizinho, a família passou cerca de 10 anos como catadores de café em uma lavoura do interior da região. Rachel tinha apenas 7 anos quando se mudaram.

“Até hoje eu não como angu, porque eu comi ração de galinha durante anos [nesse período]. Minha mãe peneirava a ração e fazia angu para a gente. Fazia canjiquinha do grão e a nossa carne era dorso, que era a parte que jogavam fora lá em Minas [parte do frango de baixo valor por ter alta porcentagem de ossos e cartilagem misturados, havendo pouca carne]. Eu já passei muita necessidade.”

Hoje em dia, “graças a Deus” nas palavras da carioca, fome ela não passa. Com um filho autista em casa, para complementar a renda familiar com a do marido, ela vende marmitas e bolo no pote em frente à clínica de terapia para onde ela leva o pequeno, de 8 anos. Enquanto ele está no consultório, ela comercializa as mercadorias. Durante certo período de tempo, a filha mais velha, de 16 anos, também precisou de terapia devido ao Distúrbio do Processamento Auditivo Central (DPAC) que possui.

“É um dinheiro que é direito nosso receber e poderia ajudar toda a minha família”, disse a carioca. “Minha mãe depois virou motorista de ônibus e morreu no corredor do Hospital Federal do Rio de Janeiro. Tentaram ressuscitar, mas ela morreu na minha frente. Ela não teve a menor dignidade, assim como minha tia, que morreu num hospital lá no interior de Minas sem um tratamento decente”, contou.

Perícias

As duas primeiras avaliações tiveram valores estimados na casa dos milhões. O primeiro foi feito ainda na época do Cruzado Novo, no valor de NC$ 16.905.840,00. O valor foi homologado pelo juízo, mas houve apelação da Terracap aprovada pelo TJDFT. O juiz negou a tentativa de recurso da família. Uma segunda perícia, anos depois, foi realizada apontando o valor de R$ 12.729.878,14 dos terrenos.

Porém, desta vez, o valor foi recorrido pelo escritório de advocacia Gouvêa Advocacia e Estratégia (GAE), que defende a família, alegando que os terrenos valiam R$ 140.268.418,30, conforme perícia encomendada pela parte. A Terracap, também recorreu afirmando que o valor dos terrenos deveria corresponder ao da época da desapropriação, em 1957. O TJDFT acolheu o pedido da Terracap, portanto, retornando o processo ao juízo de origem.

A terceira e última perícia feita, em agosto de 2014, apontou valor abaixo de R$ 100 mil para um terreno no centro de Brasília. Foi apontada a quantia de R$ 67.289,21 pelos lotes, que foi homologado pelo juiz. O escritório, então, recorreu ao TJDFT, mas novamente a magistratura negou provimento em 2016. Após isso, recorreu-se ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ainda hoje se espera uma resolução a respeito.

“Nesse recurso ao STJ, o Autor pede, alternativamente, que o juiz ao menos considere o valor apontado pelo assistente técnico da Terracap, em 15/04/1999, que apurou o valor dos terrenos no importe de R$ 3.875,160,00, e não o valor apontado pela terceira perícia (R$ 67.289,21), mas tais alegações aguardam julgamento”, destacou o escritório Gouvêa Advocacia e Estratégia (GAE) ao Jornal de Brasília.

O advogado da família há mais de 30 anos no processo, Eduardo Gouvêa, presidente da Comissão de Precatórios da OAB/RJ e presidente da Comissão Especial de Precatórios da OAB Nacional no triênio 2019-2022, destacou que o último valor é irreal para um terreno no centro de uma cidade como Brasília. “A última vez que fizemos uma avaliação, só o terreno valeria R$ 30 milhões [sem juros de mora e outras variáveis]”, disse.

“A Terracap cometeu um crime e está se beneficiando disso até hoje. E agora vai indenizar R$ 60 mil e pagar metade do valor da perícia realizada. Foi uma outra arbitrariedade cometida pelo juiz nesse caso. Ele mandou aquela que foi vencida na causa e, portanto, responsável por pagar por todos os custos do processo, pagar metade da perícia. Ora, o vencedor tem que pagar o custo do processo?”, indagou.

Ainda sem resolução

Questionado pela reportagem a respeito do novo pedido de perícia, uma vez que a Terracap havia avaliado anteriormente o valor de R$ 3,8 milhões, o TJDFT afirmou que “os magistrados podem requerer outras diligências e esclarecimentos além das avaliações apresentadas pelas partes”.

Sobre esta demora no processo e muitas outras morosidades dentro da Justiça brasileira, Gouvêa comenta que o poder público se utiliza de muitas estratégias “meramente protelatórias”. “Querem diminuir o valor, o que é legítimo, mas não se pode eternizar a demanda. […] O valor cresce demais justamente porque o próprio devedor não paga. Se ele pagasse, imediatamente o valor ficaria razoável”. Para ele, o judiciário deveria atuar mais com a conciliação.

Quanto a um possível acordo, o órgão afirmou que não cabe ao TJDFT “fazer a avaliação quanto à possibilidade [de conciliação]”. “As partes são livres para realizar um eventual acordo em qualquer fase do processo. […] O TJDFT não pode dar previsão de resolução, até mesmo porque o processo está aguardando recurso no STJ”, finalizou em nota.

Após quase cinco décadas desde a desapropriação, ainda não há perspectiva de prazo para a conclusão do processo. No STJ, o escritório GAE também descarta previsão de finalização, visto que a ação ingressou no STJ em outubro de 2016. A relatora, ministra Assusete Magalhães, negou os recursos das partes em março de 2019 e, após interposição de recursos, ambos aguardam julgamento desde março de 2020.

Até o fechamento desta reportagem, a Terracap não se pronunciou a respeito do processo. O espaço permanece aberto para manifestações.

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