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Brasília

Estudante que sofreu queimaduras na infância discute autoaceitação nas redes

As preocupações com o uso de máscara e os medos do contato físico são semelhantes ao terror da aproximação com o fogo depois do acidente.

Redação Jornal de Brasília

05/05/2021 20h32

Atualizada 06/05/2021 15h01

“E nela se aloja um ‘eu’. Um corpo separado os outros, e a isso se chama de ‘eu’?” (A Descoberta do Mundo, de Clarice Lispector, em 1967). Foto: Malu Carvalho Jornal de Brasília/Agência UniCEUB

Malu Carvalho / Agência UniCEUB

A universitária Allana Krysna Lopes da Silva, hoje com 21 anos, viveu outro tipo de isolamento social obrigatório a partir dos quase dois anos de idade, antes mesmo que um vírus escancarasse esse recado 19 anos depois para todos. Em suas palavras, as preocupações com o uso de máscara e os medos do contato físico são semelhantes ao terror da aproximação com o fogo depois do acidente que mudou a vida dela. A queimadura deixou sequelas físicas e emocionais.

O corpo marcado evidencia a dor que sofrera depois de riscar um palito de fósforo sentada no chão de sua cozinha. O fogo logo se espalhou pelo corpo todo. Nesse momento, Allana entrava na estatística média de 111 mil crianças internadas no Brasil por ano em decorrência de acidentes domésticos, de acordo com o DataSUS, departamento de dados do Sistema Único de Saúde (SUS). Os dados também apontam que só em 2019 foram aproximadamente 113 mil crianças internadas, vítimas de algum acidente em casa. Entre elas, mais de 21 mil foram hospitalizadas devido a queimaduras. Em Brasília, a média é de 270 pacientes internados por ano por conta de queimaduras graves.

“Eu não quero ser vista como apenas uma vítima, eu sou uma sobrevivente”, dizia ela pressionando as coxas queimadas à mostra. “O principal não é o que eu passei, e sim o que eu faço a respeito”. A família lembra que tudo aconteceu muito rápido. Ela estava em casa com a irmã de quatro anos sob supervisão da babá no dia do acidente. Como não havia mais ninguém na casa, o que se sabe é que a irmã, Adrianne, havia esbarrado a porta da geladeira no armário azul da cozinha durante uma tentativa de pegar um doce. Nesse momento, uma caixa de fósforos caiu, Allana teve curiosidade, começou a brincar com a caixa e riscou um palito, o que se transformou em chamas no vestido e na calça de moletom que usava.

“No momento que aconteceu o acidente da Allana, eu tinha ido levar meu sobrinho pra escola e tinha ido buscar o pão e o leite que nós recebíamos do governo”, lembra Valéria Aparecida Lopes da Silva, mãe de Allana, que tinha 24 anos na época. De acordo com ela, quem deu a notícia que a deixou em estado de choque foi uma vizinha. Como não havia muro entre as casas, Adrianne correu para pedir ajuda dos vizinhos que prestaram o socorro inicial, envolvendo a menina em panos e rolando-a na terra. Quando Valéria chegou em casa, em Planaltina (DF), a filha já havia sido levada de carro para o Hospital Regional de Planaltina (HRP) e a babá havia fugido. Valéria se mudou dois anos depois, pois não suportava entrar mais na mesma casa em que a filha se acidentou. “Eu fiquei sem acreditar”. Ela foi a pé de lá até o hospital, estarrecida. Ao chegar, Allana estava sendo atendida na emergência e tendo suas roupas removidas. O acidente causou queimaduras no braço esquerdo, tórax, barriga, mamas, coxas, maxilar, orelha esquerda, mão esquerda e uma parte das costas de Allana. “Quando cheguei lá, ela estava gritando porque não queria que tirassem o sapatinho dela”. A menina foi transferida de ambulância para o Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), hospital referência em tratamento de pessoas queimadas em Brasília e no Centro-Oeste. O percurso é de aproximadamente 40 quilômetros.

Independente da distância, ao saberem que a caçula da família se acidentou, os parentes não mediram esforços para chegarem ao hospital. O avô Sizenando Lopes da Silva, que antes já tinha trabalhado como palhaço de circo, parou de sorrir quando recebeu a notícia de que a neta provavelmente não sobreviveria aos 47% de queimaduras pelo corpo. “O senhor é Deus, doutor?”, disse o avô na ocasião.

Ela sobreviveu. Depois de 93 dias internada e 15 cirurgias. Mais do que sobreviver, Allana resolveu fazer da vida um abraço a quem precisar. Ela usa as redes sociais para contar a própria história, encontrar e ajudar quem não sabe o que fazer com a dor. Ela também busca explicar a importância da prevenção, já que mais de um milhão de crianças foram internadas vítimas de acidentes nos últimos 10 anos no Brasil, de acordo com dados do Ministério da Saúde.

Com a chegada da pandemia do novo coronavírus, o número de acidentes domésticos aumentou devido ao maior tempo que as crianças ficam em casa durante a quarentena. Por esse motivo, a Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus) lançou uma cartilha com dicas de prevenção, em parceria com a Sociedade Brasileira de Queimaduras e a ONG Criança Segura Safe Kids Brasil. O documento, divulgado logo depois do início da pandemia, está disponível no site oficial do Sejus e contém informações sobre prevenção, primeiros socorros e os locais da casa com maior incidência de acidentes.

“Quando acontece um acidente, as pessoas só querem saber da tragédia em si, não querem saber do antes, muito menos do depois. Como o incêndio do Flamengo, no Ninho do Urubu. Ninguém fala da dificuldade que o queimado tem de conseguir um emprego depois do acidente. Ele não consegue”. O número de crianças internadas por acidentes domésticos anualmente no Brasil é capaz de lotar dois estádios de futebol.

Foto: Malu Carvalho / Jornal de Brasília/Agência UniCEUB

Além das cicatrizes

A invisibilidade da pessoa queimada vai além de suas cicatrizes, sendo pesada principalmente na influência dos aspectos socioeconômicos. O acesso à informação sobre atitudes preventivas em casa e no trabalho nem sempre contempla a sociedade como um todo, uma vez que grande parte dos acidentes de trabalho com queimaduras envolve principalmente homens adultos de baixa renda e que trabalham com eletricidade, como aponta pesquisa de um artigo publicado na Revista Brasileira de Queimaduras em 2014.

Encostada no sofá de casa e olhando para um terço em cima do rack, Allana se lembra da época da escola. Por volta dos nove anos de idade foi quando mais sofreu preconceitos. Ela queria que os outros aceitassem suas cicatrizes da mesma forma que ela aceitava. “Um dia eu peguei um livrinho de orações e quando abri era uma oração para atrair amigos. Eu lia todos os dias, porque pra mim, ter amigos era mais importante do que ter marcas”. Ela não só não tinha amigos, como também não tinha recursos para o tratamento adequado, como a maioria dos que se queimam. Valéria trabalhava com carro de mensagens na época, e o que recebia não era o suficiente nem para abastecer e levar Allana nas trocas de curativos três vezes por semana no HRAN, nem para a fisioterapia nos outros dois dias no Lago Sul, bairro nobre da cidade. Por esse motivo, elas iam de carona.

Reabilitação

O sentimento de impotência por parte dos profissionais da saúde dá-se a partir do momento em que uma vítima de queimaduras não tem condições de continuar um tratamento. Pode ser por falta dinheiro para um curativo, um remédio ou até para a passagem de ônibus. Rosa Irlene Serafim, terapeuta ocupacional e presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras em Goiás, relata que é impossível não alinhar o fator social com o de saúde para tratar um paciente. “Quem trabalha com a reabilitação, tentando interagir e devolver essa pessoa para a sociedade, trabalha até com mais questões sociais do que com o tratamento em si. Essa pessoa vai sofrer dificuldades e preconceitos para ser reinserida no mercado de trabalho”. Rosa também se queimou em casa quando criança e decidiu que queria trabalhar e lutar pela causa durante a faculdade.

Desde então, dedica-se inteiramente ao trabalho no hospital e aos projetos envolvendo os queimados, como o acampamento Camp Samba, onde é diretora de Planejamento Estratégico e Gestão de Pessoas. O projeto busca reunir durante quatro dias crianças e adolescentes sobreviventes de queimaduras para a construção de autoconfiança, fazer novos amigos e deixar as cicatrizes de lado em favor das brincadeiras. O acampamento é gerido por voluntários e financiado por doadores. Além disso, Rosa também faz parte do Núcleo de Proteção aos Queimados, instituição não governamental sem fins lucrativos que busca apoiar e reabilitar sobreviventes baixa renda, educar profissionais ao tratamento de pacientes queimados e realizar campanhas e ações beneficentes em prol deles.

Ela chama a atenção para a preocupação que as pessoas queimadas que se expõem em redes sociais devem ter. “Essas pessoas precisam ter certeza de que estão emocionalmente preparadas para receber o pedido de ajuda de novos queimados. Elas podem ajudar e compartilhar histórias, mas apenas o profissional da área é que pode exercer o tratamento adequado. Nem toda queimadura é acidental e isso não é fácil de lidar”.

Allana aprendeu sobre empatia e persistência dentro de casa todos os dias em que sofria enxurradas de humilhação na rua e era recebida com doses de amor, carinho e admiração por sua mãe e sua avó Heleda de Matos Silva, que erguia uma bandeira com fitas coloridas na cozinha onde a neta se acidentou enquanto me contava da promessa de Folia de Reis que fez para que Allana se recuperasse na época e saísse viva. Heleda carregava a bandeira pelas ruas para arrecadar o dinheiro que ajudaria no tratamento da neta. No dia que recebeu alta, Allana saiu toda vestida de branco do hospital. De volta para casa, a “capivarinha do vovô”, como era carinhosamente chamada pelo avô, quis ir embora em cima de um velotrol no banco do Fiat 147 que ele tinha dirigido para buscá-la. Essa é a única lembrança de Allana da época do acidente.

O dinheiro que Heleda arrecadou entre andanças por Goiás com a neta recuperada serviu para a compra da primeira malha compressiva de Allana. Na época, a malha não era oferecida pelo SUS, o que fez com que ela sofresse retração cicatricial, acarretando grande dificuldade para o desenvolvimento normal da pele. Atualmente a malha compressiva é disponibilizada pela rede pública apenas em algumas regiões brasileiras. Em Brasília, de acordo com relatos de pacientes em reabilitação, a malha não é mais entregue. Os hospitais alegam falta de verba para a compra de material em larga escala.

Inclusão

Mesmo com cicatrizes cobrindo quase metade do corpo, Allana não se esconde. “Quanto mais eu me mostro e conto a minha história, mais pessoas vão saber que os queimados existem. Nós não temos ninguém como referência de pessoa queimada. A inclusão também precisa existir pra gente. As campanhas inclusivas que vemos hoje em dia nunca incluíram um queimado. Isso é triste.”

A Associação Nacional dos Amigos e Vítimas de Queimaduras (Anaviq) criou um abaixo-assinado em novembro do ano passado para pressionar a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Prevenção de Queimaduras e Atenção Global ao Paciente Queimado, na inclusão da pessoa com sequelas de queimaduras na Lei de PcD, uma vez que a queimadura ocasiona traumas físicos, sociais e emocionais, trazendo consequências que muitas vezes limitam as oportunidades disponíveis à vítima.

No Brasil não existe especialização médica para tratamento de pacientes queimados em todos os hospitais. A residência médica na área existe apenas na Escola Paulista de Medicina, na Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, e no Curso Nacional de Normalização de Atendimento ao Queimado, oferecido pela SBQ.

Em Salvador (BA), no Hospital Geral do Estado (HGE), haverá em 2021 o primeiro programa de residência médica em atendimento ao queimado. Vai ser o primeiro programa do Norte/Nordeste.

Para Allana, a inclusão pode abrir portas que se trancam para os sobreviventes assim que se queimam. “Já é difícil construir um amor próprio nessa situação, ainda mais quando não é só você que não se aceita logo que se queima, mas também a sociedade. Como eu vou me enxergar se ninguém me vê? É por isso que eu também falo de empoderamento no Instagram, porque eu não conheci nenhum queimado que falasse disso pra mim”.

Mais riscos

Os queimados ganharam mais visibilidade durante a pandemia com um aumento de 25% no número de casos de queimaduras, de acordo com dados divulgados pela Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ). O que os médicos não estavam preparados é que muitos dos casos seriam provenientes do uso indevido de álcool 70%, que teve liberação no mercado sem necessidade de aval por parte da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em março, logo que o vírus chegou ao Brasil e houve escassez na venda de álcool em gel.

Durante a pandemia o HRAN deu prioridade máxima para tratar pacientes infectados pelo vírus, mas continua de portas abertas recebendo e tratando vítimas de queimaduras que vêm do DF e de fora.

Acidente no sofá

Entre todas as referências conhecidas como sobrevivente de queimaduras, Clarice Lispector provavelmente pode ser considerada a menos óbvia. A célebre autora, que completaria 100 anos, sofreu acidente doméstico ao dormir com um cigarro aceso no sofá de casa, provocando um incêndio que resultou em queimaduras graves em parte do corpo, principalmente nas mãos que usava para viver. Ocorreu no auge de seus 47 anos, o que fez com que ela se escondesse ainda mais.

Allana acredita que se Clarice não tivesse se isolado, ela poderia ter colaborado para tornar os queimados mais visíveis diante da sociedade. “Cada vez que uma pessoa que já tem visibilidade se queima e se esconde, os queimados como um todo vão deixando de existir. É como se a gente fosse deixando de ter importância”.

Aquilo que Clarice pode ter encontrado em seu silêncio íntimo para escrever, Allana encontrou no espelho e nas redes.

Serviço

O HRAN (61-20171900) é um dos 40 centros de referência no atendimento às vítimas de queimaduras do país e o único público do Centro-Oeste, de acordo com a Revista Brasileira de Queimaduras. A emergência do hospital e a ala dos queimados funcionam 24h por dia. O ambulatório atende queimaduras menos graves e realiza troca de curativos de segunda à sexta de 8h às 12h e de 14h às 18h.

Cuidado

Os especialistas chamam atenção para um cuidado redobrado dentro de casa, que é onde mais acontecem acidentes, principalmente com crianças. Além do perigo do álcool, ele não é necessário em superfícies da casa em que produtos de limpeza podem fazer a proteção. Ele também não deve ser usado em nenhuma parte do corpo fora as mãos quando não há possibilidade de água e sabão.

Para evitar acidentes, as cozinhas devem ser protegidas das crianças, assim como produtos inflamáveis, caixas de fósforos e eletricidade.

Durante uma emergência envolvendo queimaduras, a pessoa deve ser levada ao hospital mais próximo para execução dos primeiros socorros.

A prevenção começa em casa.

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