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Brasília

Em Águas Lindas, a palavra convence e o exemplo arrasta

Projeto de Políticas Alternativas Penais dá oportunidade para presos se reintegrarem com trabalhos na cidade

Vítor Mendonça

09/08/2023 5h00

Foto: Divulgação

“A mente que se abre a uma nova ideia, jamais voltará ao seu tamanho original. É nisso que acreditamos”, descreve a juíza de Direito de Águas Lindas, Cláudia Andrade, utilizando a frase de Albert Einstein a respeito do projeto “Políticas Alternativas Penais: trilhando um novo caminho”, iniciado há dois meses. Por meio dele, presos dos regimes semiaberto e fechado podem se reintegrar na sociedade fazendo trabalhos variados na cidade.

Pela primeira vez na história do país, foi criada uma secretaria específica para este tipo de trabalho social junto aos encarcerados em nível municipal. Regularizada pela Lei Municipal nº 1.499/2021, a Secretaria de Políticas Alternativas Penais é uma parceria custeada e administrada entre a prefeitura municipal e a Diretoria Geral de Administração Penitenciária (DGAP) do Estado de Goiás.

O secretário da pasta, Jaime Silva, destaca que o programa já conta com 29 presos realizando trabalhos em Águas Lindas – 22 do semiaberto e sete do fechado –, revitalizando praças, quadras, gramados, jardins, meios-fios, entre outros aparatos públicos de uso comum. Todo o trabalho é acompanhado por agentes da segurança pública de Águas Lindas. São 300 vagas no total, a serem preenchidas ao longo dos próximos meses.

Foto: Divulgação

O critério para inclusão no programa não está baseado no crime que foi cometido, mas sim na boa conduta do preso, tendo demonstrado, principalmente, que está arrependido e interessado em uma nova vida – respeitando as ordens do presídio, cumprindo a lei dentro da carceragem.

Dentro do projeto, a cada três dias trabalhados, o detento diminui um dia da condenação da pena. Além disso, o trabalho é remunerado com um salário mínimo, que é depositado em uma conta especial – acessada diretamente pelos presos em regime aberto e podendo ser acessada pela família dos que estão em regime fechado.

“Isso está abrindo a mentalidade dele [preso] para uma nova oportunidade. Quem sabe ele saia já empregado da prisão. Então, o benefício para ele é totalmente voltado para a integração social e ressocialização, para que seja plantada na cabeça dele uma nova ideia. Ele praticou um crime, foi condenado, e agora há uma chance de ter uma qualificação”, destaca a juíza.

O preso, porém, será desligado se cometer alguma violação das regras de bom comportamento em qualquer área, tanto dentro da unidade prisional quanto nos trabalhos realizados nas ruas da cidade. “Se ele está trabalhando em um projeto de ressocialização e ele quebrou a confiança, não tem como voltar. O preso será imediatamente desligado sem a possibilidade de retorno”, disse Cláudia.

Vídeo: Divulgação

Semana passada, em um dia de entrega dos uniformes aos presos que estavam revitalizando uma das praças de exercícios públicas, a juíza destacou que todos estavam gratos pela oportunidade de sair da unidade prisional para serem úteis à sociedade. “Estão ocupando um tempo ocioso que muitos ficam dentro das celas. Faz bem para a mente. A família pode ver também que estão trabalhando, produzindo e se preparando para voltar à vida livre na sociedade”, continuou.

Para Jânio Antônio da Silva, 45 anos, um dos detentos em regime fechado que participa do programa, esta é uma oportunidade única para retornar à sociedade de maneira digna. Ele foi preso em 2018 pelo crime de homicídio, em razão de um desafeto. “Essa é uma oportunidade de voltar à sociedade não só para mim, mas também para muitos”, disse.

“Tem sido gratificante essa oportunidade de sair, passar o dia fora trabalhando, é algo grande. […] Muitos começam no serviço interno [dentro do presídio] e aguardam uma oportunidade para começar a trabalhar na rua. Estou sendo melhor recebido na população, que trata a gente muito bem. O pessoal passa, entrega refrigerante, agradece, porque estamos contribuindo para melhorar a sociedade também”, destacou.

Entre os detentos, há muitos que já possuem qualificação e que poderão voltar a exercer a profissão dentro do projeto. Jânio é encarregado de obras e afirmou que quer se fortalecer nos estudos relacionados à antiga profissão e voltar a trabalhar novamente. Como mestre de obras, ele já trabalhou em algumas das firmas de engenharia na cidade.

“Preferia não ter feito o que fiz, mas tudo na vida da gente é uma lição – aprendemos a ter mais paciência, mais humanidade, ver as coisas de forma diferente, como é hoje. Às vezes a gente é muito bruto e ignorante, mas é preciso ter paciência”, refletiu. De acordo com ele, a renda do projeto está ajudando a família de sete filhos.

Ampliação

Foto: Divulgação

A intenção é que o programa seja ampliado com mais vagas, a fim de oferecer a oportunidade para mais presos futuramente. A sede da secretaria será construída nos próximos meses, onde haverá salas de aulas e oficinas para qualificação dos presos que participarem do programa. Serão cinco salas para cursos técnicos, cinco com cursos profissionalizantes e duas para o ensino de conteúdos do ensino médio e fundamental.

Ao todo, 21 opções de oficinas devem compor os cursos ministrados dentro da futura sede, conforme destacou o secretário Jaime, que também contarão com um certificado. “O nosso foco hoje é para uma ressocialização saudável, de incentivo. O judiciário está dando uma oportunidade e a Secretaria está cuidando para qualificar, para que o empregador possa conseguir um pedreiro ou um padeiro sem olhar para o passado da pessoa”, explicou.

De acordo com Jaime, outros municípios de todo o Brasil já têm buscado a pasta para basear as mesmas políticas em outros estados da Federação. “Águas Lindas era considerada uma das cidades mais perigosas, […] mas hoje já somos considerados o município que mais ressocializa. Muitos prefeitos e secretários estão vindo para se espelhar na fórmula que criamos. Estão tendo o entendimento de que não é só prender, mas também dar a oportunidade de ressocializar”, destacou.

Foto: Vitor Mendonça/ Jornal de Brasília

O respeito da população e a boa aceitação do projeto garantiu à cidade destaque nacional na reeducação do preso. Cláudia ressalta ainda que, em razão da diminuição da criminalidade aliada às políticas de ressocialização, o ensinamento fixado na mentalidade da cidade é de que o trabalho compensa mais do que a criminalidade e que um futuro honesto ainda é a melhor solução mesmo para os que já cometeram crimes, proporcionando esperança.

“Aquele que estava praticando crimes vai ver que a sociedade cobra dele um comportamento congruente com a vida em sociedade. E ele estando preso, com trabalho, recebendo, diminuindo pena e se qualificando, ele vai ter uma nova ideia. E outros que estão dentro do presídio, vendo aqueles que se qualificaram, também têm um melhor comportamento dentro do presídio e se preparando para conseguir a oportunidade”, finalizou a juíza.

Quem é a magistrada Cláudia Andrade

Nascida em Glória de Dourados, cidade no interior do Mato Grosso do Sul com menos de 10 mil habitantes, Claudia Silvia de Andrade percorreu um longo caminho até a posição de juíza titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Águas Lindas de Goiás. Aos 44 anos, ela afirma ter gratidão a Deus pela trajetória de desafios e de conquistas desde a posse, em 8 de janeiro de 2011.

Claudia saiu da cidade do interior e foi para a grande São Paulo, onde passou a estudar de 8 a 12 horas por dia para passar no concurso de Magistratura para o Poder Judiciário. O primeiro trabalho após a posse foi no Novo Gama, depois Flores de Goiás, e passando posteriormente para a comarca de Águas Lindas de Goiás, onde atua desde 2013.

Entre 2017 e 2020, ela acompanhou, como juíza auxiliar, o ministro João Otávio de Noronha, primeiro na corregedoria nacional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por dois anos, e depois na presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por outros dois anos. Após esse período e até dezembro de 2021, ela fez a interlocução do CNJ no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Entre os trabalhos realizados na carreira, os projetos voltados para a reeducação e reinserção de presos na sociedade foram alguns dos mais simbólicos e significativos para a magistrada, uma vez que contribuíram não apenas para a reintegração de forma efetiva – garantindo a redução das chances de retorno à criminalidade –, mas também para que toda a cidade onde atua fosse beneficiada com os trabalhos comunitários realizados.

Foto: Vitor Mendonça/ Jornal de Brasília

“Tivemos o caso de um [ex-detento] que leu 150 livros e escreveu três, que eu registrei na Biblioteca Nacional. […] Outro passou no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] e foi aprovado no processo seletivo da Ambev, já saindo direto para trabalhar na empresa. Isso tudo por meio do trabalho de ressocialização pelo estudo”, afirmou a juíza. “Esse é um dos maiores feitos para mim.”

“Tenho muita gratidão a Deus e orgulho da minha origem. Tive muitas realizações pessoais e profissionais. Faço minha parte todos os dias, e estou à disposição da Justiça e do Judiciário, pronta para qualquer desafio. Quero evoluir na carreira sendo útil e entregando medidas de Justiça a quem precisar”, destacou Claudia. “Ser juíza não é só ocupar um cargo, porque é mais que uma profissão: é uma missão.”

De acordo com a magistrada, há uma frase adaptada do escritor e jornalista português Alexandre Herculano que a acompanha desde 1996 e que a motiva a continuar: “A vontade desconhece obstáculos”. A proposição em muito está relacionada ao trabalho que incentiva no âmbito da educação de presos. “Se você tem vontade não tem nada que te impeça de prosseguir. Não tem cansaço, falta de dinheiro, sono, tristeza, nada que te faça parar. Você sofre, chora, mas levanta e prossegue, porque a vontade desconhece obstáculos”, finalizou.

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