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Brasília

Daniel Francisco, a vida de um trabalhador sem filtro

O baiano do artesanato é um homem de poucas palavras, mas de muita atitude. Vende produtos artesanais por todo o Brasil

Afonso Ventania

16/08/2023 6h58

Ele está por aí. Quase ninguém vê, mas está. É mais um dos inúmeros ambulantes que são notados apenas quando abordam alguém para oferecer suas mercadorias. Aos 54 anos, Daniel Francisco Santos, caminha cerca de 15 km por todo o Distrito Federal em busca não apenas da subsistência, mas pela segurança financeira.

Para garantir uma boa aposentadoria. Divorciado e pai de um filho “já casado”, ele depende de passos firmes para se aposentar. Mas diz que está cansado. Cansado de tanto perambular por aí carregando o peso de sua sobrevivência.

De acordo com o baiano do artesanato, como é conhecido, natural da cidade de Cipó, os produtos que leva pendurados nos ombros e braços chegam a pesar até 15kg. Todo dia ele escolhe uma região administrativa e segue, de ônibus, com o fardo cheio de produtos e esperança por dias melhores.

São redes e prateleiras feitas de algodão, bolsas confeccionadas com a palha da carnaúba e cintos de couro (“puro”, segundo ele). Tudo feito pelos parentes na Bahia. Para um homem de estatura baixa e magro, é um esforço e tanto. “Ainda mais embaixo desse sol quente e da secura aqui do Cerrado”, diz. Ele, no entanto, já encarou climas ainda mais árduos.

Morando sozinho em uma quitinete no centro de Taguatinga há 1 ano e 4 meses, o baiano do artesanato jura que já percorreu quase todos os estados brasileiros e já foi até para alguns países da América do Sul. Paraguai, Argentina e Chile foram alguns dos citados na conversa que tivemos quando nos encontramos em Sobradinho. Apesar de ter tido pouco estudo, e considerar que é um homem “de poucas palavras”, Daniel é muito extrovertido. O que falta no vocabulário, sobra em simpatia.

Interessado na história daquele carismático nordestino, apresentei-me como jornalista. Disse que estaria interessado em contar a história dele. E então apertamos as mãos.

Segue a nossa conversa:

Tudo bem com o senhor?

Cansado, mas sempre em frente. Não posso parar. Falando nisso, essa entrevista vai demorar, porque eu preciso vender. Sabe como é, né? É daqui que tiro o meu sustento.

Vai ser bem rápido, prometo. Vou fazer algumas perguntas e gravar imagens suas enquanto vende os produtos.

É para a televisão? Podemos fazer sem filmar? É que eu tenho vergonha de aparecer na televisão carregando tudo isso na rua.

Por quê?

O senhor sabe, as pessoas vão achar que passo fome e que tô na rua por que preciso.

E não precisa?

Na verdade, é que eu escolhi não ter patrão. Nunca tive. Trabalho vendendo arte desde os 18 anos. Prefiro assim. Mas tenho dinheiro para almoçar todo dia na rua. E já tenho minha casinha na Bahia, uma motinha e o meu carro próprio. Comprei tudo vendendo artesanato.

Ao longo da entrevista pude perceber um certo complexo de inferioridade naquele homem de pele negra criado na “roça”, como ele mesmo destacou. Apesar de tantas conquistas e de uma vida independente, sem chefe, Daniel expressou algumas vezes sentir vergonha de ser pobre e ganhar a vida como ambulante.

Ele também se mostrou resistente em admitir que era analfabeto algumas vezes durante a conversa. Quando perguntei a ele por que não usa o carro para trabalhar, ele disse inicialmente temer a “confusão do trânsito”. “Gosto mais de usar o carro para ir para a igreja e para pegar a BR quando vou pra minha terra”.

Depois, quando trocamos os números dos telefones ele me pediu, inibido, que eu enviasse apenas áudios. Justificou inicialmente que tem um “pequeno problema nas vistas” e que teria dificuldade para ler as letras miúdas das mensagens virtuais. Conversa vai, conversa vem, ele passou a se sentir mais confortável com o bikerrepórter e confessou que, por ter nascido na zona rural de uma cidade pequena nos rincões da Bahia, ele precisou deixar a escola para ajudar o pai e os 13 irmãos na lida do campo.

“Quase não estudei. Leio muito pouco. Mas sei assinar o meu nome. É por isso também que não dirijo o meu carro na cidade. Tem muita placa de trânsito”, admitiu com um sorriso tímido.

Racismo

Apesar da simpatia e da boa vontade, o baiano do artesanato demonstra alguma desconfiança e cuidado ao falar. Os olhos fitam o interlocutor e, ao mesmo tempo, estão atentos a todos os lados. Segundo ele, é preciso “cuidar” para não ser assaltado. Aliás, em 2012, ele teve um carro roubado com várias mercadorias dentro. “Suei muito para comprar esse carro. Foi um prejuízo de quase R$ 60 mil”, lamenta.

Daniel destaca, porém, que a maior dificuldade que ele vive trabalhando na rua é a discriminação pela raça ou pela situação social. “Já sofri racismo. Tem gente que humilha a gente. Às vezes pela cor, às vezes pelo (tipo de) trabalho. A gente fica muito desanimado. Mas não podemos baixar a cabeça para ninguém”, ensina.

Mande uma mensagem para as pessoas…

As pessoas precisam amar mais o próximo e não podem desejar o mal a ninguém. E agradeço a Deus que me deu força e coragem para trabalhar. E ao meu pai que me ensinou o valor do trabalho.

Você tem religião?

Sou evangélico.

O que você gostaria de pedir aos políticos do nosso país?

Mais saúde, educação e trabalho para todo mundo que quiser trabalhar.

Qual é o seu sonho?

Quero parar num lugar fixo porque essa vida de caminhar com peso é cansativa. Mas a aposentadoria ainda vai demorar. Quero abrir um comerciozinho para sobreviver quando tiver mais velho. E ainda não tenho o suficiente para isso.

Pensa em casar novamente?

Deus vai preparar, né? Já fui casado e não deu certo. Parece que não foi da vontade Dele, mas confio que Ele vai preparar uma mulher para mim.

Depois da entrevista, que terminou por volta de meio-dia, decidimos almoçar juntos. Ele recomendou um restaurante na beira de uma das avenidas principais de Sobradinho que conhecia. “A comida é bem simples, viu? E eu posso pagar para o senhor”, anunciou. Agradeci a gentileza, mas, o convenci de que, como ele teria perdido algumas vendas no tempo em que me concedeu a entrevista ao longo de uma hora, eu pagaria o almoço para compensar o prejuízo. Ele resistiu, mas aceitou.

Depois do café nos despedimos. Ele agradece e diz que precisa seguir adiante para “ganhar o dia”. Apertamos as mãos. Subo na bicicleta e o baiano do artesanato me lembra de enviar a reportagem e as fotos pelo aplicativo de mensagem. Quando dou a primeira pedalada de volta para casa, ele grita:

“Não esquece. Manda áudio, viu?”

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