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Brasília

Crônica de Natal: “minha ex-esposa me ajudou a superar a dependência química”

Cirlan Gomes é grato à Gisele Silva que, mesmo depois de 12 anos separados, o resgatou da rua e o levou à reabilitação. Solidariedade, compaixão e amor ao próximo refletem o verdadeiro sentido do Natal

Afonso Ventania

25/12/2023 5h00

Arte: Baggi

Era para ser mais uma pedalada em direção à pauta que já havia sido definida. Eu faria a reportagem sobre a padaria-escola, um curso de panificação oferecido para ex-dependentes químicos pela Casa de Oportunidades, programa desenvolvido pela Vila Samaritana, uma organização sem fins lucrativos que visa a justiça social e atua no Córrego do Arrozal, na fronteira entre Sobradinho e Planaltina-DF. Mas o que parecia apenas uma pauta de serviço acabou revelando-se uma história inusitada e repleta de solidariedade, perdão, fraternidade e compaixão, valores tão celebrados nesta época de Natal.

Naquele dia ensolarado e muito quente de dezembro, o objetivo era entrevistar os coordenadores do programa, o professor do curso e, claro, alguns alunos. Acompanhei a primeira aula sobre como fazer o pão francês e registrei as imagens. O ponto central era mostrar a possibilidade de recuperação das vítimas das drogas, um dos maiores flagelos da humanidade, e como a união entre o poder público e a sociedade civil ajudam nesse processo. Missão dada, missão cumprida.

Mas, felizmente, o jornalismo não é uma ciência exata. A depender das circunstâncias e do poder de observação do repórter, a pauta pode mudar de rumo a qualquer momento. E foi exatamente o que aconteceu naquela manhã. Depois de gravar as entrevistas e as imagens na padaria-escola, segui para a Casa de Oportunidades, ali perto, local que acolhe os ex-dependentes químicos e oferece moradia e cursos técnicos para reinseri-los na sociedade.
Fui recebido pelo coordenador do programa Jorge Luís, o Jorginho, e por um dos moradores, o técnico em eletricidade e vigilante Cirlan Gomes, 53 anos, que também participou da aula de panificação mais cedo. “A capacidade da casa é para receber até 12 pessoas, mas costumamos acolher entre 7 a 8 moradores. Recebemos egressos de comunidades terapêuticas e qualquer pessoa que precise do nosso apoio. Todos participam dos cursos oferecidos e depois fazemos contatos com empresas parceiras para absorverem os profissionais recém-formados”, explica Jorginho.

Depois de me apresentar a confortável e ampla residência, com sala, três quartos, dois banheiros, cozinha, varandas e até um campo de futebol Society, Cirlan contou um pouco da sua vida e de como e quando começou a usar drogas e a abusar de medicamentos psiquiátricos. “Foi depois de um relacionamento que tive entre 1992 e 1996”, lembra. Ao mesmo tempo em que consumia diferentes tipos de drogas, no entanto, ele praticou diversas modalidades esportivas e teve muito destaque em algumas. Segundo ele, conquistou o título de campeão brasileiro de kung-fu e de campeão brasiliense de boxe. Ele também participou de competições de ciclismo e triatlo nos anos 1990.

Cirlan nasceu em Brasília e passou a infância no P-Sul. Bastante inquieto e inteligente, já cursou três faculdades, mas não concluiu nenhuma. “Cursei 5 semestres de Direito, de Engenharia Elétrica e de Educação Física”. O uso de entorpecentes, a instabilidade emocional e a dificuldade financeira impediram a conclusão dos cursos. Além disso, ele foi sócio de uma farmácia com a ex-esposa Gisele Silva, 45 anos, de quem é divorciado há 12 anos e tem uma filha, a Beatriz*, de 14.

Disse ainda que, no auge da pandemia da Covid-19, em 2020, perdeu o emprego de vigilante e entrou em depressão. Em consequência, passou a recorrer ainda mais às drogas e acabou sendo despejado do apartamento onde morava. Ficou durante quatro meses em situação de rua. “Para garantir mais segurança, eu dormia nas cercanias do Hospital Regional de Taguatinga (HRT), nas cadeiras próximas à entrada. Sem dinheiro, me alimentava das refeições doadas por grupos religiosos. Foi o período mais difícil da minha vida. Não desejo isso para ninguém”, relata.

Cirlan Gomes também utilizava a estrutura dos Centros Pop, espaço do Governo do Distrito Federal que atende a população em situação de rua, como ponto de apoio durante o dia para usufruir das três refeições servidas e fazer a higiene pessoal. De acordo com estudo divulgado recentemente pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPE-DF), há 2.938 pessoas em situação de vulnerabilidade distribuídas nos espaços públicos da capital do país. Ainda segundo a pesquisa, discussões e conflitos familiares em devido à dependência de substâncias psicoativas configura uma das causas da situação de rua.

Ao ser questionado sobre como chegou à comunidade terapêutica Desafio Jovem, na área rural de Planaltina, para realizar o tratamento de nove meses, ele surpreendeu a todos ao contar que foi a ex-esposa que o levou pessoalmente! Nem o próprio coordenador sabia desse episódio. Afinal, infelizmente, não é comum ouvir histórias de ex-cônjuges que se comunicam amigavelmente e, muito menos, que se ajudam. Atônitos, ouvimos um relato inspirador sobre a força do amor e suas diversas faces. De como é possível amar ao próximo de outras maneiras. E não apenas em relações conjugais. O casamento entre Gisele e Cirlan foi destruído pelas drogas, mas eles decidiram cultivar o amor fraternal incondicional. Mesmo separados, mantiveram-se próximos pelo bem da filha. Sem saber que, mais tarde, esse querer bem faria tanta diferença na vida de ambos.

Ao mencionar a atitude da ex-esposa, Cirlan enche os olhos d’água e a emoção toma conta do ambiente. A gratidão aflora pelos poros daquele homem atlético que viu no gesto da mãe de sua filha a tão desejada segunda chance. “Pedi muito a Deus que eu tivesse uma nova oportunidade. E Ele usou a Gisele como instrumento”, diz, com a voz embargada.

Naquele momento, aconteceu o ponto de virada da reportagem. Como pode a ex-esposa, depois de 12 anos de separação, tomar uma atitude tão nobre e resgatar das drogas o homem de quem pediu o divórcio?! Eu queria saber mais, conhecer as razões que a motivaram, os princípios e os valores morais dessa mulher. Ainda com os olhos marejados, perguntei ao Cirlan se ela falaria com a reportagem. Ele prometeu perguntá-la. Disse apenas que ela é advogada e jornalista.

Aula de empatia

Foi um encontro emocionante. Após alguns dias convencendo Gisele Silva por telefone a falar sobre sua iniciativa de resgatar a dignidade do ex-marido, eis que ela aparece imponente em uma cafeteria onde nos encontramos. Uma mulher negra, de estatura média, extremamente educada, simpática e muito eloquente. Acanhada, pediu apenas para não publicarmos fotos para evitar a exposição da imagem, já que é comentarista em uma emissora de TV.

Acostumada a encarar processos complexos em tribunais como advogada, e as câmeras de TV, como jornalista, Gisele, no entanto, aparentava um certo desconforto no início da entrevista. Logo entendi que era por causa da dificuldade em entender o impacto de sua atitude notadamente incomum. A humildade e o coração puro custavam a compreender que a postura de estender a mão diante da dificuldade extrema do pai de sua filha se tratava de uma exceção.

“Desde que nos separamos, conseguimos manter uma relação muito cordial por causa da Beatriz*. Ele sempre ligava para falar com ela e acabávamos conversando um pouco”, explica. Segundo Gisele, Cirlan usa entorpecentes desde o início do casamento deles. Por ser muito jovem à época, ela não percebeu. Com o passar do tempo, no entanto, a advogada começou a notar padrões de comportamento suspeitos. “Meu irmão também usou drogas e a família toda se envolveu no tratamento. Foi então que descobri e pedi a ele para parar. No início, ele dizia fazer uso recreacional, mas depois tentamos ajuda psicológica e espiritual. Nada funcionou e, então, para preservar a Beatriz, pedi o divórcio. Lamentei muito”, relembra.

Preocupada com o bem-estar do ex-marido, Gisele acompanhava, de longe, a vida de Cirlan. Em alguns momentos, diz, chegou até a levar colchão, pois ele estava dormindo no chão, e comida para ele antes do despejo. Entre altos e baixos, ele seguia consumindo drogas, segundo informavam os pais dele. “Em alguns dias, me contavam que ele saía bem arrumado de casa, com calça, camisa e sapatos, mas voltava só de shorts”. Não sabemos se ele era furtado ou trocava as roupas por drogas”.

As conversas entre os dois passaram a ser mais frequentes. Gisele se preocupava com Cirlan. De alguma maneira ela revivia a situação que passou ao ajudar o próprio irmão e se sensibilizava com as condições do ex-marido. Ela conta que, algumas vezes, o ex-cônjuge enviava fotos enquanto estava na fila do sopão com outras pessoas em situação de rua no Centro Pop. “Ver a pessoa com quem convivi por nove anos chegar a esse ponto dói no coração. Independentemente do sentimento entre homem e mulher ter acabado, eu sinto um amor fraternal muito grande, além do desejo de que ele seja feliz, até porque é o pai da Beatriz. Se eu sou capaz de ajudar alguém desconhecido na rua, porque participo de ações de voluntariado, eu não poderia ficar sabendo dessa situação sem tomar nenhuma providência.”

Experiente no assunto devido à experiência que viveu no seio da própria família, Gisele sabia que precisava ajudar Cirlan de maneira mais efetiva. Mas querer ser ajudado e contar com o apoio da família dele era fundamental para iniciar o tratamento. Ela, então, passou a atuar em duas linhas: convencer o ex-marido a ingressar em uma comunidade terapêutica e a conversar com os pais dele em busca de apoio. Foi bem sucedida em ambas.

A partir daí, fez pesquisas na internet em busca de lugares para receber Cirlan, enviou mensagens para algumas pessoas e marcou consultas até encontrar o destino mais apropriado. Pouco tempo depois, junto com o irmão, marcou um encontro com o pai de sua filha na Rodoviária do Plano Piloto e o levaram para a comunidade Desafio Jovem, em Planaltina. Também conseguiu reaproximar Cirlan do próprio pai. “Eles resolveram muitas pendências do passado”, comemora.

Ela acompanhou o tratamento de nove meses junto com a filha e procura sempre apoiá-lo — na atual fase, a reinserção no mercado de trabalho. “Mando os documentos necessários e até elaboro currículos e os envio por ele. A Beatriz sofreu também, porque, aos poucos ela foi compreendendo e ele mesmo explicava a própria situação. Eles são muito apegados”.

Já no fim da entrevista, Gisele conta que sofreu críticas de algumas pessoas por ajudar o ex-marido. “Eu não consegui ficar em paz ao saber que ele estava dormindo na rua e correndo riscos. Por mais que as pessoas me falassem para eu não me envolver porque éramos separados, eu não conseguia deixar de lembrar de toda a nossa história juntos. Tivemos nossos momentos bons e devemos respeitá-los. Eu não podia ser diferente com alguém que foi tão especial para mim e é o pai da minha filha”, justifica, emocionada.

Imbuída pelo espírito natalino, Gisele conclui o bate-papo afirmando que o amor ao próximo é essencial para resgatar a solidariedade e que existem várias formas de amar. O exemplo dela nos mostra que o amor não é só um sentimento, mas, atitude, ação. É preciso escolher amar e, muitas vezes, esforço para demonstrar todo esse sentimento. Amar é reconhecer e acolher com afeto as necessidades do outro.

“Não é porque acabou o amor entre homem e mulher que não pode existir o amor fraternal; que não se pode manter uma relação amigável com quem se conviveu por tanto tempo. Eu fico admirada ao perceber a surpresa das pessoas sobre a relação que tenho com o Cirlan porque, para mim, isso deveria ser o normal, desde que tudo esteja muito bem resolvido entre os dois. Precisamos olhar para o outro como ser humano e incentivar o diálogo”, ensina.

Ações marcam muito mais do que palavras. Ao socorrer o ex-marido, Gisele não só desnuda a bondade de sua alma, mas mostra a todos que Cirlan é alguém que vale a pena. Ela chancela o caráter e a honestidade do ex-marido adicto. Longe das drogas, o espírito guerreiro treinado de Cirlan por anos em ringues e tatames recusou-se a ser vítima e, com o apoio irrestrito de Gisele, decidiu que não se submeteria às tentações e recaídas. A verdadeira força do lutador está em assimilar os golpes e reagir na mesma medida.

Dois seres humanos ligados por um amor incondicional e inspirador que gerou um fruto. Beatriz, certamente, reproduzirá no futuro o gesto da mãe e multiplicará a compaixão pelo mundo.

E o gesto de Gisele prova que o verdadeiro sentido do Natal está em fazer o bem sem esperar nada em troca e que a bondade e a compaixão são valores universais. E neste ano, Gisele, Cirlan e Beatriz vão comemorar não apenas o nascimento de Jesus, mas o renascimento de Cirlan e o resgate de sua dignidade. “Agora é conseguir um emprego e seguir a vida com a minha filha. Quanto à Gisele, serei eternamente grato a ela e aos pais dela e ao irmão que sempre me apoiaram”, finaliza, Cirlan.

Epílogo: com a saída de Cirlan das ruas, a pesquisa do GDF mencionada acima sofreu uma redução importante e precisa ser atualizada o quanto antes. Menos um para conta.

Feliz Natal!
*nome fictício a pedido dos pais

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