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Brasília

Beber e dirigir é crime, mas punição é branda para o motorista embriagado que mata no trânsito

Professor de Direito Constitucional sugere critério objetivo em lei para julgar criminosos ao volante e reduzir a sensação de impunidade

Afonso Ventania

23/03/2023 5h00

Foto: Henrique Kotnick/Jornal de Brasília

O alto índice de mortes no trânsito brasileiro está relacionado a diversos fatores. Segundo autoridades, ativistas e especialistas no setor, a alta velocidade, a alcoolemia (alto índice de álcool no sangue ao dirigir) e o uso de celular ao volante são as principais causas das 45 mil mortes registradas nas vias e rodovias do país todos os anos. Cerca de 300 mil brasileiros sofrem lesões graves no mesmo período. O prejuízo econômico dos sinistros de trânsito é estimado na ordem de R$ 50 bilhões. Os números estarrecedores são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

De acordo com a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), só entre março de 2020 e julho de 2021, foram 308 mil internações no Sistema Único de Saúde, o que representa um grande impacto na saúde pública e um custo enorme para o Estado.

Tais sinistros não são consequência de “acidentes” aleatórios e infelizes, mas da falta de educação dos motoristas, da imprudência e, principalmente, da falta da aplicação de penas mais severas para os criminosos ao volante, apontam especialistas. Os homicídios derivados dos sinistros de trânsito representam boa parte dessas macabras estatísticas e geram grande insegurança jurídica na sociedade e a sensação de impunidade maltrata as famílias das vítimas.

Isso por que o judiciário tende a ser subjetivo ao tipificar os crimes de trânsito em homicídio culposo (culpa consciente) ou em dolo eventual (quando se assume o risco de matar). Para o subprocurador-geral do DF, Zélio Maia, em entrevista ao Jornal de Brasília, o problema não é a lei em si, mas a ausência de um mecanismo objetivo para “impedir o julgador de pensar” e aplicar a lei diretamente. “Ao criar esse critério objetivo você tira a margem de liberdade do julgador”, destaca.

A dificuldade da justiça tem sido comprovar a intenção do condutor causador da ocorrência, o que pode resultar em punições brandas em relação à gravidade do crime cometido. O homicídio culposo ocorre quando há culpa consciente. O motorista alcoolizado até admite que algo possa acontecer, mas se considera capaz de evitá-lo. A pena é de 2 a 4 anos.

Já no dolo eventual, o condutor prevê o resultado de seu ato, mas não se preocupa em evitá-lo. Ou seja, ele assume o risco de matar ao decidir por ingerir álcool e sair de carro. Nesse caso, o autor é julgado pelo Tribunal do Júri e a pena é de 6 a 20 anos, mas pode subir para 12 a 30 anos, caso seja qualificado.
De acordo com Zélio Maia, um dos mais renomados professores de Direito Constitucional e Penal do DF, a dificuldade para a justiça é comprovar a intenção do acusado, já que o dolo eventual e a culpa consciente são muito similares e próximos. Maia defende a aplicação do dolo eventual no caso em que o motorista embriagado matar no trânsito, mas acrescenta que é preciso criar um mecanismo mais objetivo para evitar a subjetividade na hora de tipificar o crime de trânsito. Ele também acredita ser possível aplicar o dolo eventual nos casos em que motoristas (mesmo não alcoolizados) excedam em 50% ou mais o limite de velocidade da via.

“Não é preciso mudar a legislação porque ela já contempla o dolo eventual. Fala-se em alterar a lei para que seja adotado um critério objetivo e ninguém mais ter condições de não aplicar o dolo eventual”, pontua. “Se for provado, por laudo incluído no processo, que o réu estava embriagado, atropelou e matou alguém, então o juiz não tem o direito de pensar”, acrescenta.

Ele lamenta que em alguns casos, juízes de primeira instância aplicam o dolo eventual, “mas invariavelmente as instâncias superiores reformam a decisão para culpa consciente” (homicídio culposo), o que acaba beneficiando os motoristas criminosos. No Brasil, são raríssimos os casos em que motoristas que matam no trânsito vão para a cadeia. Geralmente as penas são revertidas para o pagamento de cestas básicas e serviço comunitário.

Procurador do DF de carreira e advogado, Zélio Maia diz haver uma cultura no Brasil de considerar o delito de trânsito como um crime menor. “Acho que isso acontece por termos no país uma criminalidade muito elevada no geral e aí o judiciário acaba se acostumando que os delitos de trânsito são crimes menores, o que não são”, conclui.

Violência contra a mulher

O sub-procurador geral do DF, Zélio Maia, também aborda a violência contra a mulher e isonomia de gênero na entrevista, outras de suas especialidades no Direito.

Segundo ele, o aumento do número de feminicídios decorre do machismo estrutural entranhado no Brasil e fala sobre a Lei Maria da Penha como mecanismo para conter os ataques covardes contra as mulheres.

Assista a entrevista na íntegra no vídeo abaixo:

Muito se fala sobre impunidade em relação aos crimes de trânsito e vários especialistas sugerem a atualizar a lei para transformar o crime de trânsito de homicídio culposo (sem a intenção de matar) em homicídio de dolo eventual (assume o risco de matar). Qual é a sua opinião como professor de Direito Constitucional?

A legislação é um problema grave e que toda a sociedade reclama não só em delitos de trânsito, mas de um modo geral. Eu já fiz um estudo sobre a criminalidade no Brasil, crimes de todas as naturezas, em que constatei que a quantidade de mortes que ocorre no país por crimes, não há comparação com nenhum outro país. Só é comparado com países em guerra. Obviamente, os crimes de trânsito estão inseridos (no estudo). 

Aumentar a pena nem sempre é a melhor solução. Mas precisamos repensar em algumas situações. Uma delas é em relação a se dirigir embriagado. Quem dirige sob efeito de álcool sabe que não teria uma reação igual teria se estivesse em um estado normal de consciência. Nesse caso específico, em que o motorista embriagado atropela um pedestre ou um ciclista, ou causa uma colisão entre dois veículos, eu não consigo enxergar que ele não sabia do risco de produzir um resultado pior do que se ele não estive sob efeito de bebida alcoólica. Por isso, eu defendo sim que nessa situação, ao invés de o crime ser qualificado como homicídio culposo, ser qualificado como homicídio doloso. 

Qual é a diferença entre homicídio culposo e doloso, professor?

O crime culposo ocorre quando eu, por um esquecimento, inadvertência de um padrão de comportamento ou um pequeno excesso eu causo um dano a alguém. Por exemplo, se eu estiver dirigindo um veículo, na velocidade da via, e for pegar algum objeto que caiu no interior do carro e me abaixo para pegá-lo, e causo um acidente, aí está dentro de uma “normalidade”. 

Agora, o dolo eventual é quando alguém vai de carro para um bar, consome bebida alcoólica, sai embriagado para dirigir e atropela e mata alguém. Nesse caso, ele assumiu o risco de atropelar alguém. Por que ao ingerir álcool, ele sabia que estava de carro. Eu já saí de carro para encontrar amigos, sem saber que ia beber e, quando decidi beber, ao mesmo tempo decidi deixar o carro onde estava e pedi um carro por aplicativo e fui embora. Por que eu tenho a consciência de que, sob efeito do álcool, eu tenho uma reação muito mais lenta ao volante. E o consumo de bebida está diretamente ligado ao excesso de velocidade por que o motorista fica mais afoito. 

E existem dois tipos de dolos. O dolo direto é aquele quando eu quero matar e vou lá e mato. Já o dolo eventual que é o que se discute hoje para ser aplicado nos delitos de trânsito ocorre quando eu não saí para matar ninguém, mas eu sei que a minha condição coloca em risco as pessoas. É aquele dolo em que intimamente eu sei que posso causar um dano, mas eu não estou nem aí. Essa é a definição do dolo eventual: eu não quero (causar o dano), mas eu assumo o risco. 

Então o dolo eventual seria uma medida que alertaria a sociedade e traria a consciência de que se beber, não dirija. Isso é respeitar o próximo. 

E no caso do motorista que está em alta velocidade e matar alguém atropelado, mesmo sem ter ingerido álcool? Como punir esse tipo de crime?

É uma outra situação. Quando alguém deliberadamente, sem a ingestão de bebida alcoólica, decide ultrapassar a velocidade da via, muitas vezes, muito acima da velocidade permitida, ele tem a consciência de colocar em risco a vida de alguém. Por que a reação dele será muito menos eficiente em uma velocidade altíssima ao transitar numa via pensada para uma velocidade menor. 

Por essa razão eu entendo que se o crime de trânsito ocorrer numa velocidade muito mais elevada do que a permitida tem sim que ser transferida para dolo eventual. Na minha opinião, 50% acima da velocidade permitida já é um bom índice para iniciar esse debate para qualificar essa situação como homicídio de dolo eventual. 

Os sinistros de trânsito envolvendo atropelamentos de pedestres, ciclistas e em colisões têm aumentado na mesma proporção do aumento da frota de veículos nas cidades. E não se vê ninguém indo para a cadeia, o que expõe a impunidade nesses casos. Em regra geral, a pena do condutor por matar alguém no trânsito é revertida em pagamento de cestas básicas e trabalho voluntário no Brasil, em que registra cerca de 40 mil mortes no trânsito anualmente. Por que o juiz não tem o mesmo entendimento da lei que o senhor tá sugerindo. Trata-se da interpretação, de doutrinas diferentes?

Primeiro que nem é preciso mudar a lei porque a legislação já contempla o dolo eventual. Fala-se em alterar a lei para que seja adotado um critério objetivo e ninguém mais ter condições de não aplicar o dolo eventual. A legislação já é suficiente, mas há uma cultura no Brasil de considerar o delito de trânsito como um delito menor. 

Acho que isso acontece por termos no país uma criminalidade muito elevada no geral e aí o judiciário acaba se acostumando que os delitos de trânsito são crimes menores, o que não são. Até por que 40 mil mortes impactam 40 mil famílias. O custo anual com as mortes no trânsito na ordem de R$ 50 bilhões. 

A pena precisa ser educativa por que quando a sociedade verifica que há punição para o motorista embriagado que mata no trânsito, ela passa a respeita a lei. Mas a cultura do nosso judiciário de não punir como dolo eventual é algo tão marcante que eu defendo sim, numa situação dessa, não deixar o julgador pensar. Se for provado, por laudo incluído no processo, que o réu estava embriagado, atropelou e matou alguém, então o juiz não tem o direito de pensar. 

Esse crime dever ser qualificado como dolo eventual. Ao criar esse critério objetivo você tira a margem de liberdade do julgador. Em alguns casos, juízes de primeira instância aplicam o dolo eventual, mas invariavelmente as instâncias superiores reformam a decisão para culpa consciente. E ainda tem outro ponto: quando o crime é qualificado como culposo a prescrição aumenta. E o processo no Brasil é muito demorado. 

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