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Quinto Ato
Quinto Ato

Sobre amizade e lealdade

“Quantos corações há que são tão falsos quanto escadas de areia”. Quantos de nós já não nos queixamos disso!?

Theófilo Silva

15/02/2022 12h27

amizade e lealdade

Ao despedir-se do seu filho, Bertrand, que fará uma viagem de trabalho à Itália, a condessa de Roussilon dá a ele alguns conselhos e preceitos a serem seguidos: “Gosta de todo mundo, fia-te em poucos, não faças mal a ninguém. Arma-te contra teu inimigo de preferência com direitos em vez de violência e conserva teu amigo debaixo da chave de tua própria vida! Que critiquem teu silêncio, jamais tuas palavras”. A cena se encontra na peça Tudo está bem quando acaba bem.

Destaco esse trecho: “Conserva teu amigo debaixo da chave de tua própria vida”. A condessa está falando de amizade, de lealdade, que é o tema desse artigo. A condessa, com sua experiência, sabe que a lealdade é um dos atributos que mais enobrecem e dignificam o ser humano. Ela, com sua maturidade, sabe o quão fundamental é a palavra firmada. Digo que a importância da lealdade, de certa forma a amizade sincera, é um dos temas mais presentes na obra de Shakespeare. E diria que isso não é por acaso, já que se trata, com toda a certeza de uma das qualidades mais importantes cultivadas pelo homem, aquela que nos torna seres nobres, honrados, dignos elevando às alturas o Homo Sapiens. Nada dói mais do que a traição, uma punhalada pelas costas de alguém com quem convivemos e compartilhamos nossa fé, nossos sonhos, segredos, empreendimentos; com quem fizemos uma parceria, com quem trabalhamos juntos e, enfim, a quem entregamos nosso coração. Como diz Shakespeare, alguém “Amarrado ao nosso coração com arcos de aço”. Pessoas que não nos farão dizer a sentença de Othelo, ao ser traído pelo perverso Iago: “Os homens deveriam ser o que parecem, ou pelo menos não parecerem o que não são.

Assim, perpassando algumas das principais peças de Shakespeare, temos a amizade de Horácio com Hamlet, que é leal a este em todos os momentos difíceis que o jovem príncipe enfrenta na corte corrupta da Dinamarca. Temos a lealdade quase canina do Duque de Kent ao velho Rei Lear, enlouquecido e abandonado pelas próprias filhas obcecadas pelo trono da Bretanha. Kent vai até o fim com Lear, mesmo que este em alguns momentos chegue a repudiar a dedicação que ele lhe devota. E temos Júlio César, a peça que contém ambas as situações, a lealdade de Marco Antônio a César, então cônsul de Roma, que é atacado pelos senadores. Marco Antônio, então senador, é leal a Júlio César em todos os momentos que o poderoso general e senador precisa dele.

Mesmo assim, Antônio não consegue evitar o assassinato de César, que é morto dentro do senado em uma conspiração urdida por sete senadores. E temos a traição de Brutus, jovem senador, então sobrinho-neto de César, e criado por este, que faz parte dessa conspiração, sendo ele um dos assassinos que apunhalam Júlio César. Talvez, depois da traição de Judas Iscariotes a Jesus Cristo, a cena e a citação mais famosa da literatura mundial sobre traição, seja a imprecação de Júlio César, tombando morto, ao dizer: “Até tu, Brutus meu filho”, quando este enfiou-lhe a faca frente à frente. E o mais engraçado e curioso é que essa sentença, que entrou para a história como se tivesse sido realmente pronunciada, seja pura imaginação do gênio criativo de Shakespeare. O bardo chega a superar até mesmo a realidade, por mais incrível que isso possa parecer. É possível que essas palavras não tenham sido pronunciadas pelo poderoso general e estadista.

Mas Shakespeare não para por ai, ele diz: “Quantos corações há que são tão falsos quanto escadas de areia”. Quantos de nós já não nos queixamos disso!? Até mesmo porque o bardo diz, que: “Nenhum homem vai para o túmulo sem levar no corpo a marca de um pontapé dado por um amigo”. Todos nós temos amigos, parceiros e aliados, e sabemos o quão difícil poder ser a amizade, a lealdade nas relações. Mesmo assim não dá para viver sem cultivar relações, não devemos desistir de tentar, de persistir. E Shakespeare nos incentiva a isso, quando nos diz, em Hamlet: “Sê fiel contigo mesmo e disso se seguirá como a noite segue o dia, que não serás desleal com quer que seja”. E nesses tempos difíceis, sombrios em que abunda a covardia, amizade e lealdade são imprescindíveis!

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