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Quinto Ato
Quinto Ato

Escrever é enfrentar o caos

Numa época de ChatGPT, o robô escritor, ficou fácil ver o quanto as pessoas não sabem mais escrever. Existe outra turma que sequer aprendeu

Theófilo Silva

30/03/2023 5h00

Atualizada 29/03/2023 12h21

Reprodução

Segundo o romancista Elias Canetti, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, “para dizer algo sobre este mundo que tenha algum valor, o escritor não pode afastá-lo de si ou evitá-lo. Tem de carregá-lo enquanto caos”. Pois o escritor tem “a vontade de responsabilizar-se por tudo aquilo que é apreensível em palavras”. Canetti acha que”, num mundo onde importam a especialização e a produtividade, o múltiplo e o autêntico estão embaciados”. Quanta verdade há nessas palavras! Porque o caos é injustiça, e escrever é uma forma de lutar por justiça.

Sempre concebi o mundo como um lugar onde a verdade deve prevalecer. Um mundo onde eu pudesse ler meus livros e escrever meus textos, combatendo a mentira, a sem-vergonhice, sempre buscando à verdade, a autenticidade – por mais difícil e doloroso que seja isso. Fugi, e ainda fujo, da especialização técnica como o diabo da cruz, porque ela mata a liberdade e a individualidade. Quantos são aqueles que não conseguem mais escrever algo que não seja sobre sua própria especialidade e se desesperam por saber que perderam sua capacidade de metamorfosear-se, perceber-se e interagir com o mundo. O escritor tem de ser um homem livre. Algo parecido com o que diz Shakespeare, por intermédio seu personagem Jacques, na peça Como Gostais: “Minha liberdade deve ser total. Devo ser tão livre quanto o vento”.

Vemos o sofrimento daqueles que se perderam na jornada em busca de “uma vida sem riscos”, que ainda acham que podem encontrar o caminho de volta e escrever alguma coisa que valha a pena ser lida, já que, na juventude, queriam ser livres, mas foram engolidos pela “segurança”. Um grande número de pessoas acha que só existe vida para quem trabalha para o Estado. Ou seja, só existe vida na “segurança” do serviço público. São pessoas que trabalham para os governos fazendo relatórios, planilhas, pareceres, petições e outros textos. Atividades louváveis, respeitáveis e necessárias. Mas escrever com liberdade, livre de peias, é outra coisa bem diferente. Escrever ensaios, poesias, romances é fazer uma viagem contínua e deslumbrante.

Numa época de ChatGPT, o robô escritor, ficou fácil ver o quanto as pessoas não sabem mais escrever. Existe outra turma que sequer aprendeu. Não estou falando de analfabetos, dos que não estudaram por falta de oportunidade, mas sim dos que estudaram, fizeram um curso superior. Dos que pensam que sabem. Os que postam textos totalmente desprovidos de conteúdo que valha a pena ser levado a sério, que ainda ferem de morte a língua portuguesa. Desses, abstenho-me de falar. E existe uma turma prostituída vendendo seus textos para quem paga mais por suas calúnias, quase todos vivendo dentro das redes sociais e blogs. Hoje temos pouquíssimos escritores que valem a pena ser lidos no Brasil. A mediocridade e a ignorância avançam a passos largos. Temos poucas referências agora. Confesso que, no momento, não me ocorre o nome de nenhum escritor brasileiro que reputo como notável ou fora de série. É possível que exista. Mas até onde vai meu conhecimento, não é possível avistá-lo. O terreno ficou fértil para que a mediocridade prospere ainda mais.

Espero que a literatura não morra, que não seja o fim de uma era. Que o ato de passar os dias alisando um Smartphone não seja o nosso futuro, e que a forma de comunicação entre as pessoas volte a ser pessoal e calorosa – humana. E que tudo isso seja apenas uma fase de transição para algo maior. Espero que a tecnologia, os algoritmos, a inteligência artificial não nos engula, não nos mate. Porque estamos todos assustados com nossa dependência dessas maquininhas maravilhosas e viciantes. Muitos acham que elas podem fazer tudo por nós. Escrever, inclusive! E para escrever de verdade, criar, é preciso ser múltiplo e autêntico como quer Elias Canetti! E escrever é lutar contra a estupidez, o bizarro, o grotesco …Enfim, é enfrentar o caos nosso de cada dia.

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