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Violência contra a mulher: Por quantas vezes ainda teremos que falar disso?

Há incontáveis aspectos associados à violência contra a mulher e não pretendo esgotá-los nesse texto, porém, vou ponderar sobre alguns

Pragmática Psicoterapia e Cursos

13/07/2021 17h35

Violência contra a mulher: Por quantas vezes ainda teremos que falar disso?

Por Dr. Carlos Augusto de Medeiros

A resposta óbvia é: enquanto ainda for necessário e, infelizmente, pelo andar da carruagem, ainda vai demorar muito para deixar de sê-lo. Recentemente, ficamos chocados com as cenas de agressão de um tal de Dj Ivis em sua mulher, em frente ao seu filho. Se você não ficou chocado com as cenas, há uma coisa muito errada, não apenas com você, mas com toda a nossa sociedade.

Praticamente todo mês há, na grande mídia, casos de violência contra a mulher que, muitas vezes, culmina em feminicídio. Estou falando da grande mídia, mas se levarmos em conta os incontáveis casos não notificados, é absolutamente estarrecedor o quadro de violência contra a mulher. Certamente, com o isolamento social, em decorrência do qual fomos submetidos a fatores estressantes e à restrição a diversas atividades que nos davam prazer, intensificou a frequência de violência doméstica. O próprio presidente da república mencionou a relação entre o isolamento social e a violência doméstica, numa tentativa de nos convencer a não passar merthiolate porque arde.

Há incontáveis aspectos associados à violência contra a mulher e não pretendo esgotá-los nesse texto, porém, vou ponderar sobre alguns. O primeiro deles é descrito elegantemente pela psicanálise como um dos mecanismos de defesa do “eu”, o deslocamento. Em termos bem simples, o deslocamento consiste na troca do alvo de um impulso agressivo de um que pode revidar para outro que não pode fazê-lo. O antigo site “Mundo Canibal” exemplificava muito bem o conceito com a animação intitulada “Havaianas de Pau”. Nessa animação, uma criança é surrada pelo pai quando o Corinthians perde. Após apanhar, a criança diz a frase que muitos certamente se lembram: “Eu aprendi que, quando o Corinthians perde, a culpa é minha”.

O pai, no desenho, por mais que tente, terá muitas dificuldades em agredir os jogadores e o técnico do Corinthians e, certamente, não pode fazê-lo de sua casa. Nesse momento, o deslocamento entra em ação e ele pode descontar as suas frustrações em quem não pode contra-atacar, no caso, o seu filho. Esse processo tão comum a nós se repete na violência contra a mulher. Frustrações das mais diversas são frequentemente descontadas nas mulheres. Isso ocorre por duas simples e nauseantes razões: 1. As mulheres têm menos condições de contra-atacar, e 2. A sociedade considera tolerável homens fazê-lo. A primeira palavra que me vem à cabeça ao falar em deslocamento é a covardia. Já que o homem não pode agredir quem o ofendeu, agride a pessoa que não pode revidar, no caso, a mulher.

Além do deslocamento, é óbvio, os valores conservadores de que as mulheres devem ser submissas ao homem contribuem sobremaneira para as violências contra a mulher. E sinto muito, não me venham com essa de que “Vocês têm que ter paciência. Fomos criados por pais conservadores. Ainda estamos aprendendo. Ainda estamos nos desconstruindo”. É fácil pedir paciência quando se está do lado de cá da espada para quem está com o gume no pescoço. Pessoas estão sofrendo e morrendo enquanto são dadas desculpas para a conivência com esse e tantos outros absurdos.

Já que estamos falando de desculpas, podemos abordar outro mecanismo de defesa do “eu”, a racionalização. A racionalização diz respeito à criação de justificativas socialmente aceitas para atitudes reprováveis, como agredir uma mulher, por exemplo. Agredir qualquer pessoa é errado, mais errado ainda seria agredir quem não tem condições de se defender. Como atenuantes à própria conduta repulsiva, homens se justificam: “eu estava estressado”; “ela me traiu”; “ela que começou”; “o álcool me faz perder a cabeça” etc. A racionalização é utilizada para avaliarmos a nossa culpa e a reprovação social. É realmente curioso o fato de que a sociedade é extremamente benevolente ao acatar tais justificativas, mas severa com as mulheres quando são promíscuas, quando querem decidir sobre o próprio corpo, quando não desejam ser mães, quando não se submetem etc.

Essa última parte do texto é destinada a você mulher, vítima de violência. Em primeiro lugar, que fique bem claro que a violência psicológica (por exemplo: “sua gorda nojenta”; “você nunca vai encontrar alguém que te queira”; “você é um lixo”; “você não presta”) é tão física quanto um tapa. Ignore as barbaridades que te disseram ao longo da sua vida, do tipo: “você é responsável pela harmonia do lar”; “você deve obediência ao seu marido”; “sirva seu marido, senão, ele pode procurar na rua”; “nunca se oponha ao seu marido em público”; “o casamento é indissolúvel”; “nada pior do que uma mulher divorciada”; “se o casamento acabar, o fracasso é seu”.

Por fim, eu sei que é difícil, mas não seja conivente com a própria violência sofrida. Sem dúvida, na condição de psicólogo, acredito na mudança, todavia, a mudança só ocorre quando desejamos mudar. Vários homens, após cometerem violência doméstica, além de fornecerem justificativas como as exemplificadas acima, prometem que vão mudar, que nunca mais farão “aquilo” etc. Os dados de reincidência de violência doméstica, infelizmente, recomendam ceticismo diante de tais promessas.

Na realidade, a tendência é contrária, ou seja, a violência tende a se agravar. A minha orientação é: só acredite nas promessas se elas forem acompanhadas de tentativas concretas de mudança, como a busca de apoio em psicoterapia, grupos de agressores anônimos ou ao serviço social. Dizer que vai mudar é fácil, agora mudar é bem difícil.

Lembre-se, você não está sozinha! Mas ficará sem buscar ajuda!

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