Dr. Carlos de Almeida Vieira
“…o real existe para nós… o que existe realmente é individual”(Martin Heidegger).
“Esse-carater-do aqui-agora”(Duns Scotus)
In “Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal” de Rüdiger Safranski, editora Geração.
Sozinho andava pelo meu apartamento, à noite. No fim do corredor há um espelho acima de uma comoda de estilo um tanto barroco. Parei, parei por alguns minutos e me ví como em momento algum havia me visto. Olhos nos olhos as avessa. Espanto, medo, angustia, sensação de desrealização imagética, “ o real existe para nós”. Que real? Eu, mim, o outro eu que escreveu J.L. Borges?, Quantos eus uma pessoa tem? Soterrado pelo recalque criou-se várias camadas de Eus. A experiência analítica denuncia todos os meus personagens, resgata recortes da subjetividade que por razões tenebrosas foram lançadas naquilo que Freud denominou de Inconsciente. Nesse instante que escrevo, as minhas mãos tremem, ainda sentindo o estado apofânico do encontro de mim comigo. Safranski, citado acima, escreve interpretando um recorte de Heidegger: “Cada ente é em si inesgotável. Não esgotamos a sua riqueza se o pensarmos como objeto. Pensar realmente esse “tal-agora-aqui” significa superar o pensar objetualizador. Só então o ente pode aparecer em sua plenitude singular. Mais tarde Heidegger dirá do ente encontrado dessa maneira que ele é presente(anwesend). Presença rompe a estreiteza da objetualidade”.
Volto à atenção a mim na imagem especular. Tem uma visão externa, sensorial, no latente dessa imagem reside uma pleiade de mim que partes podem ser lembradas, e outros aspectos ainda soterrados esperando emergir, se a coragem e a meio-loucura pemitir. A casa da fazenda numa cidade do interior; meu querido cavalo que o batizei como Bolinha; a primeira vez que fui ao cinema e o encontro inaugural com o mar, um mar de várias cores, água morna, poucas ondas e lá no fundo, a primeira noção de infinito, talvez uma aproximação oceânica da palavra Deus. Deus é uma ideia que me lembro de Clarice Lispector quando em seu livro “Água Viva” se refere a algo “antes do pensamento.
Retorno a olhar o espelho. Angústia; dores; medos infantis; alegria de passar no vestibular de Medicina; São Paulo lugar que adotei quando lá fui morar, sair de Maceió e me defrontar com a “selva de pedra” foi uma experiência transformadora! Hoje, quando no esspelho lembrava da perda de minha esposa, recentemente, encontro não por acaso, um poema belo, singelo e doloroso de Heidegger chamado de Horas de Calvário publicado em 1911; “Horas de calvário em minha vida/ em claridade sombria/ de desalento e desânimo;/ muitas vezes me vistes./ Chorando chamei, e nunca em vão./ Meu jovem ser/ cansado de queixar-se; só confiou no anjo chamado Graça”.
Esse é o espelho interno, do momento presente. Outros eus de mim continuam em “estado de biblioteca”, como lembrou um dia, Carlos Drummond de Andrade.