Para alguns, especialmente os jovens, o mundo da noite é vivo, agitado, atraente e maravilhoso; fascinante, simplesmente. Para outros, o período noturno se resume em sono incontrolável.
A frase popular “a noite é uma criança” é muito usada no nosso país; expressa a ideia de que está cedo para dormir, que se pode fazer muitas coisas, que a noite ainda promete muito. Lembro da minha adolescência — em que eu já estava morrendo de sono, sempre querendo voltar para casa — quando os amigos falavam: “Dormir em casa? Enlouqueceu? Vamos para uma outra festa, a noite é uma criança!”.
Você, leitor, consegue manter-se acordado, divertindo ou trabalhando a noite toda? Podemos continuar nossas atividades pela madrugada, sem parar para dormir? Como ficam o nosso ritmo biológico e o relógio cerebral? Como o nosso organismo sabe se é dia ou noite e hora de descansar e dormir? O sol e a luz natural fazem bem à saúde do cérebro e organismo?
Para responder essas questões, é preciso entender o conceito de ritmo biológico e relógio do cérebro.
O que é ritmo biológico?
Define-se ritmo biológico os eventos fisiológicos e comportamentais dos organismos que se repetem em ciclos, o que os tornam previsíveis. Considerando o período de recorrência dos eventos, os ciclos biológicos podem ser classificados em:
- Ciclo circadiano: quando os processos fisiológicos se alternam aproximadamente a cada 24 horas – circadiano quer dizer a cerca de um dia. A maioria das variáveis fisiológicas e comportamentais do ser humano apresenta ritmicidade circadiana;
- Ciclo infradiano: quando os eventos fisiológicos se repetem em um período superior a 28 horas. São ciclos que não ocorrem diariamente, por exemplo: o ciclo menstrual, que dura em torno de 30 dias; o processo reprodutivo, que no homem perdura em torno de 9 meses; e o transtorno afetivo, como depressão, por exemplo, em que os sintomas costumam intensificar-se no outono e inverno e podem ter remissão na primavera e verão.
- Ciclo ultradiano: quando os processos fisiológicos acontecem em períodos inferiores a 20 horas. Neste caso, os eventos acontecem mais de uma vez ao dia, como movimentos respiratórios, batimentos cardíacos, piscada dos olhos, apetite, fome, sede, busca por alimento, desejo sexual, ciclo urinário, etc.
O ritmo circadiano é fundamental para regulação do sono e da vigília e tem a luz como seu fator de destaque. Ao amanhecer, a luz solar, o barulho, a hipoglicemia, o estresse e a vontade de urinar ativam o cérebro, particularmente o sistema hipotálamo-hipofisário, localizado na base do crânio, para produzir ACTH, o qual estimula as glândulas adrenais (também denominadas glândulas suprarrenais), localizadas no polo superior dos rins, a produzirem e liberarem o cortisol. O cortisol, por sua vez, atua no sistema imune e inflamatório, além do metabolismo do açúcar, gordura e proteína, com finalidade de preparar o organismo para as atividades diárias.
Ao anoitecer, a redução dos estímulos da luz natural, entre outros fatores, modula a atividade dos núcleos supraquiasmáticos (NSQ) cerebrais que vão promover a liberação de melatonina pela glândula pineal (uma estrutura do cérebro). Ao contrário do que muitos acham, a melatonina não é um indutor direto de sono, e sim é um hormônio que desempenha papel de mensageiro do sono, ao sinalizar ao corpo que já anoiteceu. Por esse motivo, equipamentos eletrônicos que emitem luz e/ou barulho prejudicam o sono e constituem causas de insônia, uma vez que enganam o cérebro, que acha que ainda é dia, e não noite.
O ritmo circadiano antecipa o ajuste das funções corporais perante modificações do meio externo, por exemplo, prepara o indivíduo para a vigília e, também, para o sono, elevando o nível de alerta comportamental um pouco antes do amanhecer e o reduzindo ao anoitecer; também prepara o organismo para o calor da manhã e o frio da noite, respectivamente, diminuindo e aumentando a produção e a conservação de calor corporal.
Núcleos supraquiasmáticos (NSQ): o relógio do cérebro
O organismo humano sabe se é dia ou noite? O organismo sabe a hora de acordar e de dormir? A resposta é sim. Os núcleos supraquiasmáticos (NSQ) localizam-se no hipotálamo, região central do cérebro, e são considerados o relógio biológico ou o marca-passo central do organismo. A partir da década de 1970, demonstrou-se a importância dos NSQ na geração da ritmicidade circadiana dos mamíferos. Lesões desses núcleos ocasionam perda do ritmo circadiano em várias atividades fisiológicas e comportamentais do indivíduo.
A notoriedade das descobertas sobre o ritmo circadiano e o relógio biológico interno dos seres vivos cresceu a ponto de três cientistas americanos, Jeffrey C. Hall, Michael Rosbash e Michael W. Young, ganharem, em 2017, o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. Eles elucidaram os aspectos genéticos do relógio biológico, ao isolar um gene, denominado gene period, o qual codifica a proteína PER que regula o ritmo circadiano do organismo; descreveram também os mecanismos de “feedback” que controlam esse sistema.
Os NSQ são modulados por luz, barulho, cheiro, substâncias químicas, entre outros, e informam aos diferentes circuitos neurais e endócrinos, incluindo a glândula pineal, se o meio externo é dia ou noite.
Diferentemente de um relógio físico tradicional, o relógio biológico marca um tempo físico mais adaptável, relativamente ajustável pelas condições ambientais, climáticas e psicofisiológicas, como o dia ou a noite, o quente ou o frio, o verão ou o inverno, o ansioso ou o tranquilo, o dia atarefado ou ocioso, disponibilidade de alimentos e água, etc.
Hoje, o conceito de relógio biológico surpreendentemente expandiu-se para:
- Dimensão gênica (ao pesquisar os genes do relógio, conhecidos como “clock genes”);
- Dimensão celular (os processos bioquímicos intracelulares operam em ciclos);
- Dimensão dos órgãos e sistemas (os sistemas gastrointestinal, respiratório, circulatório, gênito-urinário, nervoso e termorregulador funcionam ciclicamente);
- Dimensão comportamental (o ciclo sono-vigília e a busca de alimentos, por exemplo, respeitam ciclos).
Já é consenso que o ser humano tem um relógio central no cérebro e milhões de relógios periféricos espalhados pelo organismo, que funcionam em sincronia.
Como manter os diferentes relógios biológicos trabalhando em sintonia?
Deve-se exercer as atividades da vida diária – alimentar-se, trabalhar, exercitar-se, tomar remédios, ir ao banheiro, relaxar o ser psíquico, descansar e dormir – em horários semelhantes para sincronizar o ritmo biológico do indivíduo com o meio ambiente, social e profissional.
E se o relógio biológico estiver dessincronizado com o relógio ambiental, social e profissional?
O indivíduo poderá dormir mal e apresentar sintomas de privação de sono como sonolência, alteração de humor, indisposição, lentidão dos movimentos, dificuldade de memória e concentração, ansiedade, depressão, ganho de peso, disfunção sexual, etc. Dormir, alimentar-se e exercitar-se em horários apropriados auxiliam as pessoas a melhorar a memória e a saúde psíquica, além de perder peso e entrar em forma física.
Em outras palavras, a claridade da manhã estimula a liberação de cortisol, hormônio que promove o despertar e o alerta. Ao anoitecer, há liberação de melatonina, hormônio que favorece o relaxamento psíquico e o sono. Entre o amanhecer e o anoitecer, picos de energia e de cansaço se alternam. Nós, médicos, orientamos a população a respeitar o organismo, de preferência buscando sintonia entre o nosso relógio biológico e o relógio sócio-profissional.
Respeitar o ritmo e o relógio biológico de cada pessoa constitui um dos pré-requisitos para uma vida saudável, feliz e longa. Infelizmente, ou talvez felizmente, a noite é uma criança somente para poucos.