O sexo pode e deve ser um lugar de muita confiança, entrega e vulnerabilidade, porém, também é um lugar que envolve muito, muito poder. Não apenas o sexo, mas os papéis de gênero relacionados ao ato sexual.
Historicamente, o sexo é um lugar masculino, onde ele, o homem, é o responsável pelo que a mulher sente e deveria ou não sentir. Ou seja, as regras foram criadas com o objetivo de a figura masculina obter poder sobre nós, resto da sociedade que não entre no crivo de heteronormatividade cis branca e binária.
Mas e quando esse poder e prazer são unilaterais e a satisfação do outro se torna mais importante que a sua, como você se sente? E quando esse prazer custa a sua saúde emocional, como proceder?
Dias atrás, uma pessoa bem próxima a mim me encontrou para uma conversa. Ela estava super assustada e em estado de choque: tinha recém-passado por uma situação de quase estupro. Na citação em que me descreveu, o homem se masturbava em plena calçada, às 20h. Ele a viu passar, tirou o pênis da mão e correu atrás dela.
Conseguiu imaginar essa cena? E o sofrimento dela, consegue imaginar? Acredito que não.
Essa cena, apesar de parecer rara e pontual, é apenas um pequeno exemplo do que acontece por esse mundo afora. Inclusive, se você que está lendo isso é uma mulher, mas nunca passou por uma situação semelhante, agradeça, você é uma privilegiada. E se você é homem, saiba que existe uma chance enorme de você conhecer outros homens que façam coisas que você sequer imagina. Já parou para pensar nisso?
É aquilo: toda mulher conhece um homem abusador, mas quase nenhum homem conhece um outro homem abusador. Conta que não bate, essa, hein?!
Na prática individual, a consequência desses abusos transbordam e aparecem na falta de amor próprio e autoconfiança. Afinal, como se sentir segura se o seu próprio corpo nunca é visto pelo mundo como algo seu. “Seu corpo suas regras” dizem, mas, na prática, a realidade é bem diferente.
Na prática amorosa e relacional, tudo isso resulta em dificuldade de confiança em relação às parcerias e medo de julgamentos e autopercepções emocionais. Isto é, como viver a vida desse jeito? Carregando medos, aflições, inseguranças, culpas, angústias e uma sensação eterna de falsa proteção?
Tudo isso transborda diretamente na nossa vida íntima. E digo mais: muitas, muitas e muitas mulheres que escuto e acolho de uns anos para cá, trazem em suas bagagens pessoais experiências de abuso de diversas maneiras e em vários locais. Eu mesma sofri assédio moral e sexual em quase todos os lugares em que eu trabalhei e, por ser meu lugar de fala, exponho: é difícil demais lidar. Se a pessoa vítima de abuso se sentir sozinha e mal compreendida, então, é uma questão de tempo para os sintomas se transformarem em algo maior, mais complexo e, com toda certeza, mais delicado de mexer.
Levamos para cama e para nossas relações mais íntimas praticamente tudo que passa pelo nosso corpo: amor, dor, felicidade, tristeza, excitação, depressão, inseguranças, medos, afetos e tudo aquilo que você possa imaginar. Somos seres sexuais, mas construídos por experiências e trocas, boas e ruins. Porém, num mundo onde se usa do amor e da fragilidade do outro para obtenção de prazer e satisfação, é complicado simplesmente confiar e se entregar. Até porque, como confiar? Confiança não é uma simples chave que viramos. Demanda coragem, consciência e aquele pingo de desconfiança saudável e necessária. Incrivelmente complexo.
Eu sei que muitos esperam aqui que eu fale apenas de coisas boas e picantes sobre sexo e nossa sexualidade, entretanto, não posso deixar de abordar algo que acontece todo dia e que afeta de forma tão relevante a parte saudável e gostosa do sexo. Somos luz e sombra, e dar atenção a uma das partes ignorando a outra é uma grande ingenuidade. Afinal, vivemos dias de luta para aprendermos a vivenciar com sabedoria os dias de glória.
Finalizo esse texto deixando meu abraço apertado a quem já passou e passa pelo desconforto e pavor de um abuso. Seja acolhedor com você mesma, procure ajuda e lembre-se: você é muito mais valiosa do que as experiências ruins que já viveu.
Estou aqui por você, tá?!
Mas se você é uma pessoa privilegiada que nunca passou por algo semelhante, gostaria de te pedir algo. Seja minimamente cuidadosa com a dor da outra pessoa, aprenda e entenda que nem sempre é sobre sua dor, e que, em casos de abuso, a outra pessoa precisa de cuidado, afeto, acolhimento, voz e amor genuíno, além de, obviamente, viver num mundo onde abusos não sejam tão naturalizados assim, né?!
Você tá fazendo sua parte para um mundo mais saudável? Desejo que sim.