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Envelhecer é uma arte
Envelhecer é uma arte

As perdas são mesmo necessárias?

As perdas nos preparam para valorizar os ganhos. Na hora do desespero, as frustrações do passado podem ser o nosso sustento, por incrível que pareça.

Juliana Gai

16/10/2022 5h00

Atualizada 14/10/2022 17h32

Foto: Rodnae Productions/Pexels/Divulgação

Olá, leitores! Lá vamos nós outra vez passear pelo tema do envelhecimento humano.

Eu ensino gerontologia desde 2004 e, sempre, em aulas para profissionais, acabo mostrando uma lista de perdas associadas ao surgimento da dependência de cuidado, que assombra as pessoas idosas. Isto é tão terrível que, ao falar para a comunidade, sempre tento amenizar. É preciso mostrar o lado bom de viver mais tempo.

Em alguns casos, grandes perdas podem marcar a vida de uma pessoa para sempre e acabar tornando-a excessivamente temerosa, a ponto de não se arriscar e, até mesmo, de não conseguir amar. Afinal, o que chamamos de perda está diretamente relacionado ao amor. Ninguém chora a perda de algo de que não gostava, por exemplo. Perda e amor andam sempre de mãos dadas.

Converso muito com pessoas idosas sobre isto e gosto de ouvir suas histórias de vida, especialmente sobre as perdas. Ouço sobre casamentos violentos que geraram traumas e nunca mais permitiram uma nova relação amorosa. Mas também ouço histórias de superação, extremamente fortes, de gente que apostou em novos amores. Há quem se case uma segunda vez, uma terceira vez ou mais, e, em algum momento da vida, finalmente encontra o que procurava em um relacionamento.

Em geral, quando decidimos não mais nos submetermos a determinados riscos, também perdemos. Estaremos abrindo mão da chance de dar certo. Após uma primeira gestação frustrada que terminou com dez semanas, chorei durante 15 dias, acompanhada do meu cachorro maltês em cima da minha cama. Não lembro se tomava banho todos os dias ou não. Não lembro como foi. Só lembro que foi um imenso luto. Até hoje não entendi direito o que houve com meu parceiro, mas não conseguimos sofrer isto juntos. Sofremos bem separados. Infelizmente. Eu só o vi chorar em um único momento, durante a ecografia, quando a médica informou que não havia batimentos cardíacos do bebê, e isto foi a única prova do sofrimento dele. Depois, foi o cachorro que cuidou de mim. Parece horrível, mas eu respeito, porque cada pessoa tem sua forma de enfrentar as perdas. Nunca é igual para todos. E eu já sabia que era muito comum que casais se distanciassem após a perda de gestações ou de filhos já nascidos. Mas, certa do meu desejo de amar, seis meses depois, engravidez de novo. Deu certo. O bebê nasceu 39 semanas depois. Amamentei, dei banho, troquei fraldas, e… perdi a data de entregar a minha tese de doutorado. Até hoje é uma frustração com a qual tenho de lidar.

Casar-se também é uma perda. Você perde a liberdade de ir e vir sem ter de dar satisfações ao ser amado. Ou seja, há perdas que acontecem por escolha. Mesmo assim, geram lutos.

A questão é que durante a maturidade, já depois de tantas perdas e ganhos, começamos a racionalizar um pouco mais. Fazer escolhas menos emocionais e, possivelmente, menos dramáticas. Eu sempre digo que Deus nos prepara para envelhecer desde que nascemos. Às vezes parece tudo um plano muito perfeito que alguém escreveu. Que coisa, não é?

Talvez seja por isto que toleramos a perda do viço das nossas peles, flexibilidade das nossas juntas, os músculos indo embora, as pessoas que amamos , e, com um pouco mais de resignação e tranquilidade, vamos nos tornando professores no curso da vida. Não é que não doa todas estas perdas, obvio que dói, só que a gente aprende a administrar melhor a interferência desta dor no nosso funcionamento enquanto seres individuais e sociais. Já não nos desesperamos tão facilmente e já não deixamos de ver “luz no fim do túnel” tão rapidamente.

Quando ouço as histórias de vida dos meus clientes idosos, costumo me surpreender com os acontecimentos inesperados que também foram benéficos, segundo os interlocutores. Gosto de contar o caso de uma querida paciente mãe de sete filhos. Esta mulher foi abandonada pelo primeiro marido após o nascimento de um filho com deficiência, no Rio de Janeiro, por volta de 1958. Ela era secretária e, na época, havia propostas interessantes para quem encarasse a mudança para uma Brasília ainda em obras. Ela veio. Aqui, encontrou o amor nos braços de um jovem engenheiro e casou-se com ele. Tiveram mais seis filhos. Foram felizes por 47 anos, até que ele faleceu. Ela disse-me que, em vez de desesperar-se quando ficou viúva, ela só soube agradecer por ter sido tão amada por 47 anos de sua vida.

Certamente a sua história ruim do primeiro casamento deve tê-la marcado tanto que ela soube ser grata pelo amor que encontrou alguns anos depois e por ter conseguido vivê-lo plenamente. Sabia que esta sorte não é para muitas pessoas na terra. Experiências como esta deixam claro que as perdas nos preparam para valorizar os ganhos. Na hora do desespero, as frustrações do passado podem ser o nosso sustento, por incrível que pareça. Uso muito uma técnica com meus pacientes idosos descontentes com seu momento de vida. Faço-os lembrar-se de quais recursos utilizaram-se para superar desafios e analisamos o que deu certo. Isto nos ajuda a olhar mais positivamente para o enfrentamento das perdas. Nos lembramos o quanto somos fortes.

Judith Viorst, escritora, jornalista e psicanalista americana, escreveu um livro best-seller chamado “Perdas Necessárias”, publicado em 1987. Ela nos leva a acreditar num mundo repleto de perdas que estão incluídas, inevitavelmente, na arte de viver. E elas nada tem a ver com fechar-se em um quarto escuro e desistir de tudo e de todos, as perdas nos ensinam que aceitar os finais e recomeçar o tempo inteiro é a verdadeira meta. Como se fosse uma escola para que sejamos cada vez melhores, mais inteligentes, criativos e mais capazes de nos reinventarmos. Perder faz parte do jogo da vida.   

Fico feliz quando encontro pessoas que, como eu, acreditam que envelhecer pode ser uma dádiva, mesmo que os movimentos já não sejam tão ágeis e que o preconceito ainda não nos deixe ver os velhos como professores dos mais jovens. Mas eles são.  

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