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Além do Quadradinho
Além do Quadradinho

Rafael Pops: de brincante a produtor cultural

A Além do Quadradinho desta segunda (25) apresenta uma parte desse grande movimentador da cena cultural do Distrito Federal

Thaty Nardelli

25/09/2023 11h28

Foto: Renato Cortez/Divulgação

Formado em Ciências Políticas, foi dentro dos movimentos estudantis que Rafael Pops, 44, começou a produzir e ter seu primeiro contato com a arte. No entanto, quando chegou ao Fuá de Seu Estrelo, grupo de cultura popular que criou tradição em Brasília, a produção foi dando espaço para o artista.

“Foi na oficina de teatro que me apaixonei de vez pelo fazer artístico. Brincar com as figuras do ‘Mito do Calango Voador’ foi transformador”, conta Pops. Com palhaçaria, ele aprendeu a aceitar os desafios da vida e a vê-la de outra forma.

“Aprender a fracassar, errar, mostrar seu maior lixo foi libertador. Diria que é humanizador. Hoje digo que sou Palhaço não porque faço graça, mas porque vejo o mundo através dos olhos do palhaço”, revela o brincalhão e produtor cultural.

A Além do Quadradinho desta segunda (25) apresenta uma parte desse grande movimentador da cena cultural do Distrito Federal.

Você tem muitas memórias da sua infância?
Eu cresci no cerrado, em Goiânia, e vim morar em Brasília com 6 anos. Contudo, dos 6 aos 16, meus pais se mudaram entre Brasília e Goiânia inúmeras vezes, até que, com 16 anos, vim morar sozinho pra fazer o 3º ano do Ensino Médio em Brasília e fui aprovado na Universidade de Brasília (UnB). Tenho inúmeras memórias da minha infância, dos jogos de futebol na quadra de esporte, do grupo de escoteiros da 114/115 Sul, dos rolês e aventuras de bicicleta pelas rampas dos blocos da 110 Sul, das brincadeiras embaixo dos blocos…

De Goiânia, as minhas memórias mais fortes são na chácara da minha avó. Lá, conheci o cerrado, aprendi quando cada Ipê e Jacarandá vão florir, quando é época de jabuticaba, manga, goiaba… hoje a região dessa chácara virou cidade, mas no meu imaginário segue vivo cada pedacinho de lá.

Foto: arquivo pessoal

Do que já viveu, quando sentiu que a arte entrou em sua vida?
Bem, eu já fui muita coisa nessa vida. Formado em Ciência Política, ainda na universidade, fui dirigente estudantil, fui vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), e uma parte importante nesse espaço é a cultural. Estive na produção de Festa Junina de Centros Acadêmicos, Calourada e mais um tanto de eventos. Organizei oficinas de teatro, assim como estive na organização da 3ª Bienal da UNE. Ali, a arte já estava pertinho de mim, mas de maneira periférica. Fui seguindo na vida política como dirigente de juventude partidária, onde também tive muita relação com a cultura e profissionalmente como assessor da reitoria da UnB, em que estive até na comissão organizadora do II Festival Latino Americano e Africano de Arte e Cultura. Nesse período, a arte estava perto, mas não era a atividade principal, sendo que minha participação era quase sempre na produção.

Foto: Claraboia Filmes/Divulgação

E quando você sentiu que esse papel se inverteu?
Posso dizer que meu início como artista de fato, não como produtor, foi quando cheguei no Centro Tradicional de Invenção Cultural para fazer uma oficina de percussão. Lá fui conhecer um outro fazer artístico que me lembrava o movimento estudantil. O centro é uma das frentes do Fuá de Seu Estrelo, grupo de cultura popular que criou uma tradição para Brasília. O fazer da cultura popular não é pelos eventos, mas pela brincadeira, pelo comemorar, comungar memórias. Isso foi entrando até que passei a fazer oficina de percussão e entrei na Orquestra Alada Trovão da Mata. Foi na oficina de teatro que me apaixonei de vez pelo fazer artístico. Brincar com as figuras do Mito do Calango Voador foi transformador.

E como foi esse encontro com a palhaçaria?
Nessa chegada no Seu Estrelo, o mestre Tico uma vez me chamou pra fazer parte do grupo que ia apresentar a 5ª Roda, ou Poeira é Vestido de Vento. Simplesmente não me via capacitado para aquilo. Na oficina, Tico sempre falava das referências teatrais do grupo e resolvi ir atrás de cada uma delas. A primeira foi a palhaçaria com o mestre brasiliense de palhaçaria, Zé Regino. Aquilo foi um assombro! Aprender a fracassar, errar, mostrar seu maior lixo foi libertador. Diria que é humanizador. Hoje digo que sou Palhaço não porque faço graça, mas porque vejo o mundo através dos olhos do palhaço. De certa forma virei esse artista encruzilhado entre a cultura popular, a palhaçaria e o teatro. E nesse processo de formação, fui cursar Teatro no IESB. Lá encontrei excelentes professores e mais dois mestres em palhaçaria, Dênis Camargo e Ana Vaz. No 2º semestre, o Dênis chamou para um projeto de iniciação científica em Palhaçaria, parte da pesquisa era prática em ensaios com mais outros grandes palhaços de Brasília. Pena que esse projeto foi interrompido pela pandemia. Mas segui esse caminho. Hoje, além desses mestres daqui, já passei por muitos outros Brasil afora. E uma das coisas muito interessantes desse meu processo é que tive mais mestras palhaças do que mestres. Percebi isso recentemente, numa oficina sobre Palhaça e Pina Bausch. É fato que no presente as mulheres vem reformulando a palhaçaria num lugar muito importante. Não só na afirmação de gênero, mas de maneiras e perspectivas da palhaçaria.

Foto: Humberto Araújo/Divulgação

E como foi sua jornada dentro do “Grupo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro”, um dos mais importantes movimentos culturais da nossa cidade?
Posso dizer que isso mudou minha vida! Seu Estrelo abriu a porta do mundo artístico para mim. Por lá, já fiz quase tudo! Fui batuqueiro na Orquestra Alada, estive na produção das festas, fui DJ, sou figureiro e agora divido a condução da Oficina de Teatro Popular com Tico Magalhães, meu mestre. Então, cheguei sem nem saber o que era o grupo na oficina de percussão e fui descobrindo cada pedacinho. A primeira vez que vi uma Roda, o teatro de terreiro de Seu Estrelo, eu fiquei completamente hipnotizado. Sai desejando fazer aquilo, mas me achava completamente incapaz. Desde que conheci o grupo até eu entrar no grupo, o Seu Estrelo apresentou a 4ª Roda, ou O Amor é um Rio sem Margem, 10 vezes. Eu vi 9, só não vi 10 pelo fato da primeira vez que era a segunda apresentação da temporada. Em 2018, tomei coragem e fui fazer a oficina de teatro popular. E ali comecei minha jornada no mundo da cena. Hoje sou completamente entregue as artes da cena!

E como surgiu a “Trupe Zepelim de Led”? Qual o principal objetivo do grupo?
A Zepelim de Led surgiu dentro do Seu Estrelo. O mestre Tico Magalhães estava querendo criar uma apresentação reduzida, na qual seriam três brincantes que atuavam e tocavam. O argumento é o cerrado e sua devastação. Nesse processo, ele se juntou com Tainá Martins, Filipe Vasconcelos, primeiramente, e depois com Marcelo Nenevê. Nesse processo, fui convidado para ajudar na apresentação. Junto com a Maria Isabela, fazíamos o elefante que entrava em cena. Uma alegoria bem grande. E assim fui vendo a trupe e sempre pensava: ‘putz… Foi feito pra três pessoas, eu nunca vou conseguir entrar’. Eu achava aquilo genial, pois o Zepelim mistura muita palhaçaria, cultura popular e encantaria. Em 2021, Tico me convida pra substituí-lo. Eu fiquei eufórico! Com a saída de Tico, a trupe foi criando vida própria para fora de Seu Estrelo. Então, a trupe de certa forma é filha de Seu Estrelo, mas hoje já tem carreira própria. Tem o seu espetáculo principal, O Amaldiçoado Circo Lunar, que conta a história de viajantes do tempo e buscam a esperança através dos elementos da natureza junto com uma atriz colombina circense que está desesperançosa e decide fechar seu circo. Em 2022, a Zepelim teve a ousadia de fazer o Festival Chão de Estrelas, no CCBB. Foi a primeira experiência de produção da Trupe. E foi a cara da trupe, um festival multicultural, que reuniu música, teatro, palhaçaria e encantaria. Tudo num lugar só. Foi incrível!

Foto: Webert da Cruz/Divulgação

Então, você caminha por diversas linguagens da arte: teatro, palhaçaria e, para além disso, você é DJ…
Eu fiz o curso de DJ quando entrei na oficina de percussão do Seu Estrelo. Tudo isso por uma decepção pessoal de não saber tocar um instrumento musical e ter me frustrado por não conseguir aprender. Era tudo uma brincadeira. Tudo começou a ficar sério a partir de outra brincadeira que se chamou: Samba Urgente! Juntamos amigos pra fazer um samba pelo fato de gostarmos de festa. Aí o Samba precisava de alguém pra tocar no intervalo e eu disse: ‘deixa comigo!’ E ali eu fui me fazendo DJ. Eu brinco que sou um DJ Palhaço, pois toco muito no improviso, na relação com a plateia. O palhaço tem esse vínculo direto com o público. E acho isso a minha maior virtude como DJ.

Foto: Renato Cortez/Divulgação

E quais os desafios e honrarias que você encontra como produtor cultural?
A produção cultural passou por mim durante muitos anos de política. Nessa nova fase, quando fui me tornar artista, ela foi chegando sem ser uma profissão em si. Entrou como um hobby e apoio nos espaços onde estava, como Seu Estrelo, Samba Urgente e Réveillon que fazia na minha própria casa. Mas em 2022 eu aceitei isso como um ofício em si. Provocado por outro produtor parceiro que me chamou para realizar o Festival Chão de Estrelas. Eu aceitei de novo meio no improviso e na loucura, pois fazia muito tempo que não pegava algo tão grande para produzir e era o primeiro evento exclusivamente cultural que assumia a coordenação geral. A gente aprende na palhaçaria a sempre dizer sim e confiar no processo, o Chão de Estrelas foi esse lugar onde me reencontrei com essa figura que tinha sido no passado. Um misto de produtor, com liderança, com invenção, com improviso. O lugar de produtor cultural talvez seja um desses lugares em que eu uso e encontro todos esses lugares que já fui na vida. Depois disso, entrei junto com Augusto na frente de produção do Samba Urgente. Juntos, fizemos uma Copa, um Natal, um Réveillon e o II Festival Urgente. Foi o período mais produtivo, lucrativo e de presença do Samba Urgente na cena brasiliense. Hoje, junto com Augusto, lançamos a Matinê, uma festa ousada pros jovens adultos amigos do fim, aquelas pessoas que gostam de festa, mas não conseguem mais virar uma madrugada. Estamos lançando a festa Barato Total, junto com Douglas Amorelli. E em breve realizaremos nossos sonhos de abrir um novo espaço cultural da cidade.

Foto: Renato Cortez/Divulgação

Inclusive, o Samba Urgente é um dos projetos mais democráticos e que movimenta a nossa cidade. Pode falar mais sobre?
Aquele 2018 foi um ano de virada da minha vida! Foi no Samba Urgente o início da minha vida de DJ. O Samba Urgente tinha uma intenção muito humilde, fazer um sambinha de amigos para umas 500 pessoas. No primeiro, já deu mais de 1 mil pessoas. Fomos ocupar o Canteiro Central, no Setor Comercial Sul, onde Érico Grassi, um dos sócios do Canteiro, fez a provocação: ‘vamos fazer a roda de samba no meio da rua’. Quando eu vejo a foto da primeira roda hoje em dia, eu penso: ‘caramba, a gente era completamente maluco’. (risos).

Foi uma aventura que foi crescendo. E que bom que cresceu! O Samba Urgente mora em muitas das minhas melhores memórias e abriu muitos caminhos. Em agosto, saí do grupo para começar a trilhar esse caminho de produtor de forma mais independente. Contudo, nosso sambinha tá guardado aqui no coração.

Inclusive, este ano, você foi curador do II Festival Urgente, realizado no CCBB. Como acontece essa curadoria?
Bem, no Festival Urgente eu fui de tudo um pouco! Na ficha técnica, fiquei só como curador, mas não é um problema. Posso dizer de novo que com título foi a primeira vez que ocupei esse lugar. Nesse festival, assim como no Chão de Estrelas, fui inventivo e propus uma mescla carnavalesca, foi um festival de pré-Carnaval. Era um fim de semana que já tinha outros pré-Carnavais, como o Suvaco da Asa, na cidade. Ao contrário de competir, busquei somar ao público de Brasília. Ao invés de um line up que competisse com o Suvaco, por exemplo, pensei em algo que desse mais uma opção para o público do DF. Assim trouxemos MC Tha! Buscamos também trazer para cena o Carnaval emergente de Belo Horizonte, com o Volta Belchior, e assim fugir dos carnavais já consolidados da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Então, a curadoria, para mim, tem que ser para a cidade, não para concorrer com outros eventos. A cena de Brasília tem cada vez mais entrando nessa lógica de colaboração. E isso passa pela curadoria, pois assim o público do DF tem cada vez mais opções.

Foto: arquivo pessoal

Com todas as funções que você desempenha dentro da cultura, como você poderia analisar a cena do Distrito Federal?
A Cena Cultural de Brasília é riquíssima. A qualidade e a variedade de artistas é incrível. Agora temos um problema de formação de plateia e para realizar eventos. Brasília é uma cidade vocacionada para eventos! Só que a legislação confusa e restritiva vem dificultando que essa cena se desenvolva e tenha espaço para mostrar essa qualidade que temos por aqui. A Lei do Silêncio é um muro invisível que cada dia dificulta mais a cena cultural. Há 20 anos, o Plano era o centro comercial e cultural do DF. Hoje, com 3 milhões de habitantes, não é mais o centro comercial e ainda concentra muito dos eventos. Temos que pensar nessas dificuldades para não transformar Brasília numa cidade etérea. Hoje, pra se ter uma casa cultural viável, pois a Lei do Silêncio foi empurrando as casas culturais para espaços degradados, precisa fazer evento para mil pessoas. Nos outros grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo, há pouquíssimas casas que dependem de tanto público para sobreviver. Urge o GDF construir alternativas para esse cenário criado pela Lei do Silêncio.

Existiu algum momento em que você pensou em desistir das artes?
Bem, na verdade eu acho que eu sempre desistia e fugia. Estou vivendo o momento que estou mergulhando cada vez mais fundo nesse universo e transformando minha principal atividade profissional. As dificuldades são essas da cena. Recentemente, em busca de lugares para abrir esse novo centro cultural, chegamos ao Setor de Diversão Sul, o Conic. Um Setor que tem diversão no nome e uma dificuldade imensa de se estabelecer como diversão. Enfim, tem um poeta da cidade, TT Catalão, falecido recentemente, que dizia que “se não gosta da cidade, não mude dela, mude ela”. Acredito demais nisso!

Junto com outros produtores, você lançou agora a festa “Barato Total”. Como foi o processo de criação e qual o principal objetivo que vocês têm para as futuras edições?
Essa é uma festa que pensamos há quase um ano e fomos costurando cada pedacinho dela. É uma festa com uma banda incrível de músicos de Brasília, com figurino, cenografia pensando na mistura de discoteca com música brasileira. Queremos fazer crescer novamente a cena das festas de música brasileira no DF, criar mais essa alternativa de balada para o público brasiliense com que temos de melhor no Brasil: a música. E seguimos com edição em outubro e, quem sabe, até uma nova festa de Réveillon na cidade. Seja onde estiver, na política, nas viagens, agora na cultura, não gosto de fazer nada mal feito. Principalmente festa, porque poucas pessoas gostam mais de festa do que eu. (risos)

E qual recado você deixaria para quem está começando, seja em qualquer vertente da arte, neste momento?
A arte é algo que exige muito de nós mesmos, da nossa autoestima, da nossa autopercepção e de entender nossos desejos genuínos. É um mergulho! Primeiramente, não é fácil mergulhar assim. Depois, a arte é algo que, por aqui, fazemos pelas frestas, pois muitas vezes somos vistos mais como problema do que como potência. E poucas coisas são tão potentes como a arte de cultura. Temos o risco também de nesse esforço de autoestima acabarmos andando numa linha tênue entre saber a legitimidade do que se faz e a arrogância de se achar demais. Nisso, volto à palhaçaria e reaprendo sempre que o caminho é pelo simples. A palavra simples já começa com “sim”! Pois, não duvide do “sim” e do “simples”, mas também tenha menos certeza e seja aberto. A beleza da arte, da cultura e da vida está nos “espaços entre”, naquele momento que suspiramos entre uma expiração e inspiração. Se nos fechamos nas certezas, perdemos a capacidade de ver o acaso e encontrar esses “espaços entre”. Esteja sempre aberto pra vida e confie no caminho, como me ensinou a palhaçaria!

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