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Além do Quadradinho
Além do Quadradinho

Bissexual, feminista, bipolar e sagitariana: conheça a poeta Pâmela Rodrigues

Na edição, temas relativos ao ordinário e às memórias ganham contornos de reflexão e denúncia da condição de vida das mulheres

Thaty Nardelli

10/03/2023 16h35

Foto: Eduardo Cabral

Pâmela Rodrigues nasceu em 1990, na periferia do Distrito Federal. Escreve seus silêncios desde que consegue se lembrar. É formada em serviço social pela UnB e trabalha como assistente social. É mulher bissexual, feminista, trabalhadora, bipolar e sagitariana não praticante. Após longo período mantendo a escritora adormecida, em 2019, a sua loucura reavivou a poeta. Desde 2021 põe suas palavras no mundo, no perfil @escritorapamelarodrigues, e em coletâneas de poemas. “Areia não é sujeira” (Pautá, 2023), seu primeiro livro, será lançado amanhã (11). Na edição, temas relativos ao ordinário e às memórias ganham contornos de reflexão e denúncia da condição de vida das mulheres. O evento de lançamento ocorre às 16h, no Café Paradeiro

 Além do Quadradinho apresenta hoje a poeta brasiliense Pâmela Rodrigues  

Como foi sua infância, onde foi criada?

Eu sou da periferia do Distrito Federal, fui criada e cresci junto com a Samambaia, nosso nascimento é separado por menos de um ano. Fomos ganhando corpo juntas, porque as pessoas chegaram antes da cidade. Ainda ouço as histórias das minhas roupas de bebê que precisavam ser lavadas no chafariz, e como minha tia brigava para encher todos os baldes e bacias, tudo isso antes de chegar água encanada. Lembro dos pés sujos de terra vermelha em época de seca da cidade que demorou mais de uma década para ganhar asfalto.

Você tem uma ótima memória, deve ter sido algo intenso…

Se minha infância tivesse uma cor seria laranja, dos tijolos descobertos, dos pés sujos de poeira, do pôr do sol que só o céu do cerrado é capaz de pintar. Meus pais são separados desde que me entendo por gente. Fui criada pela minha mãe e avó materna, junto com minha irmã mais nova, e tive uma infância terrivelmente evangélica. Cresci com muito medo de que Deus descobrisse que eu gostava de meninos e meninas. Até bem velha torcia para ele estar ocupado demais pensando numa solução para fome ou concentração indecente de renda. 

E na adolescência, como foi, intensa também?

Eu adorava estudar, era a nerd odiada pelos colegas e adorada pelas professoras. Fui cercada de muito amor e “nãos”, porque é perigoso lá fora, e era pobre, menina, criança, crente, filha de “mãe solteira”. Tive muita sorte de ter um pai que não foi embora com o casamento. E ele voltava todo fim de semana para nos levar para um mundo diferente, cinema, shopping, fast food, e as cidades do DF onde os ipês floriam. Em Samambaia, a árvore precisava dar de comer. 

Você parece ter uma memória muito afetiva com sua infância? 

Sim, bastante. Minha mãe, curiosamente brasiliense, sempre foi muito cuidadosa. Ela nos imprimia seu afeto usando sua única hora de almoço para nos levar para escola, mesmo quando já tínhamos certeza do caminho. Sua linguagem do amor também se traduzia nos vestidos cheios de babados comprados da vizinha costureira que morava em uma das únicas casas de dois andares da vizinhança. Quando eu ia experimentar roupa nova ficava querendo subir a escada e me sentir personagem de novela. Minha infância e lar se deram, como tudo na vida, no improviso.

Quando e como a poesia entrou na sua vida?

Acho que o primeiro poeta que li foi Carlos Drummond de Andrade. Escolhi na livraria um exemplar de “Amar se aprende amando” quando ainda era muito nova para entender qualquer coisa sobre o amor. Porque sempre seremos jovens demais para entender o que quer que seja sobre ele. Confesso que lia, mesmo sem compreender muito, e ficava encantada pelo mistério do momento em que seria possível decifrar um poema. Não é. Depois veio Mario Quintana para me revelar que é preciso partir, é preciso chegar, mas que eu gosto mesmo é de partir. 

Você foi criando um laço com a poesia então?

E acho que a poesia virou esse meio de transporte para um lugar que precisamos ocupar, mesmo que não seja possível se mover. Recentemente me apareceu a Ryane Leão, mostrando que livros de poesia também podem ser uma espécie de receituário, e os poemas essas substâncias químicas que estancam feridas. E de fato a poesia invade nossas sinapses para mover as coisas de lugar, há dias que só ela consegue pôr ordem nessa casa.

Como a poesia muda a sua vida?

Sem exageros, a poesia foi uma das minhas ferramentas de sobrevivência a um episódio muito grave de depressão que vivi entre os anos de 2020 e 2021. Foi com a escrita que consegui dar nome a algumas dessas dores. Vê-las no papel, muitas vezes as tornou muito menos assustadoras, claro, acompanhadas do tratamento adequado. A poesia é essa ponte que não me deixa atravessar para um território de ruptura com minha identidade, história, e política de que meu corpo é feito.

Então, a poesia consegue te aliviar e transpassar para os outros um pouco dos seus sentimentos?

A poesia conta minha loucura, mas não me deixa afundar nela. A poesia me permite existir inteira e honestamente, e não mais amedrontada por expectativas e regras que eliminam e inviabilizam existências. Ela nos autoriza a dizer os silêncios que nos são impostos. Ela é essa chave que liberta mundos e vidas. Ela é uma das milhares formas de enganar a morte.

Você lembra qual foi o primeiro poema que leu ou um livro? Como foi para você? 

Tenho uma péssima memória literária, e para todas as coisas em geral. Não consigo dizer qual foi o primeiro, mas soube decorado o “Soneto de Fidelidade”, de Vinícius de Moraes, por muito tempo. Acho que esperava por um amor que coubesse nesse poema, e andava com ele guardado num bolso da memória, para sacá-lo quando chegasse a oportunidade. Obviamente que quando o amor chegou já tinha esquecido o poema. Mas acho que algo em mim enxergava o poema como esse casaco em que a gente pode abrigar a vida, para mantê-la segura, acolhida, aquecida, ao alcance do abraço.

Dentre todos os autores, qual te inspira mais e por que? 

Hoje minha maior inspiração literária é a Aline Bei. Eu admiro muito o como ela respeita o espaço que a palavra precisa. E às vezes o espaço é literal, entre as linhas que se quebram rompendo regras e expectativas. É preciso mastigar as histórias de Aline com cuidado, como quem evita as espinhas de um peixe cozido, e deixá-las acordar dentro de nós um órgão por vez. Ler Aline Bei nos exige ouvir a música escondida entre tuas palavras, que nos convida para dançar sua pequena coreografia, tamanho é o ritmo que seu texto tem. Penso que ela consegue contar histórias cheias de dores, mas nunca esquece de nos abraçar ao final com suas palavras. E além disso, é das pessoas mais generosas que a literatura permitiu que eu encontrasse. Nas suas oficinas e falas, ela não hesita em dividir todo o seu talento e entrega à arte, nos pegando pela mão para dividir o seu processo de escrita.

O que você sente ao escrever um poema? 

Quando escrevo um poema acesso alguém que existe em mim, que é toda moléculas de poesia. A poesia me faz alcançar meu corpo. Com ela aprendo a ocupá-lo, entendo suas margens, esquinas e abismos. E com a poesia  nomeio as emoções que escorrem dos meus olhos, entalam na garganta, gelam e inflamam o ventre, afetam os órgãos internos, alteram o tom da pele para caber em cada situação. Eu só sei estar no mundo porque lembrei como escrever, e também que é possível gritar numa folha em branco. 

Então, escrever, é como expressar seus sentimentos e colocá-los em seus devidos lugares?

Escrever poemas é uma tentativa de sobreviver, é emprestar sua matéria para algo que vai permanecer além de nós mesmos. E isso não é a soberba de achar que a literatura vai me tornar imortal. É a magia de ter entendido que a poesia reverbera, abre caminhos e afetos em cada um que nos lê, e é bonito saber que algo que criamos pode afetar as pessoas, no sentido de mover suas sinapses para criar sensações e imagens. Puro mistério. Eu sinto que a palavra faz a gente teimar contra a morte. O poema me arrasta para olhar nos olhos as verdades que só cabem nos versos. 

 Quais são as suas inspirações? 

Hoje minhas referências literárias são em sua maioria mulheres, que gosto do modo simples, mas extremamente profundo de escrever. Por exemplo, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Ana Martins Marques, Aline Bei, Ryane Leão, Upile Chisala, Wislawa Szymborska e Lilian Sais. 


Vejo que a maioria são mulheres…

Minha matéria de inspiração é a história das mulheres que admiro, o cotidiano e seus tons de sublime. Escrevo muito a partir das minhas memórias e de quem me cerca, dos acontecimentos, dos afetos, das cenas e histórias que roubo na rua, das notícias. É o miúdo que me inspira e move a palavra em mim.

Qual primeiro poema que escreveu e como se sentiu?

O primeiro texto que chamei de poema foi um texto que escrevi em 2020 sobre a minha relação com meu companheiro, que se chama “Dois”. Senti que era a primeira vez que conseguia falar de algo com tanta clareza e verdade. Parecia que tinha descoberto um novo idioma, o meio de comunicação do meu corpo com o mundo. E desde então sinto que só posso ser verdadeiramente compreendida por meio da poesia. É bonito, mas assustador estar completamente despida diante de quem quiser me ler.

Dois 

eu sou um dia de chuva, você um sábado de sol na mesa do bar

eu sou o café da manhã na cama e você o pastel na feira

eu sou a urgência da mudança, você, o conforto do agora

você é o olhar na estrada, eu na chegada

eu sou a subida da serra e você a calmaria da planície

eu sou a escuridão da melancolia, você me estende a mão

você é a transparência da alegria, eu quero ver o que tem dentro

eu sou azul, você é vermelho

e juntos colorimos e perfumamos o mundo de lavanda

eu sou a ebulição das palavras, você o eco

eu soo como erupção, você, como o sussurro da brisa

você é metrópole e eu vista para o mar

você é multidão, eu, deserto

eu olho para o céu, você para a tela

lua cheia, eu quase choro, você ri

eu me desespero! Você é calma

eu choro, você abraça

eu sou dúvida, você? Não sei…

eu sou um livro aberto

você é um emaranhado de linhas de código

indecifráveis

você é graça, eu bronca

você é ida e eu volta

você é rua, eu sou janela

você nos leva, eu traduzo

em poesia

eu sou o caos, você também, mas outro

eu te levo para o futuro, você me lembra do agora

às vezes somos o que o outro precisa

outras o que tememos

somos o que precisamos ser

mas não somos um só

não nos reduzimos

somos caminho

não somos sozinhos

nós somos casa, e amor.

Como surgiu a ideia do livro? 

Na verdade o livro é resultado de um processo de catalogação dos poemas que escrevi entre os anos de 2020 e 2022. Muitos deles foram escritos durante algumas das várias oficinas de escrita que pude fazer durante o período de pandemia. Durante o processo de revisão dos poemas me dei conta da linha que os ligava, que juntos contavam uma fase de construção de um corpo, um corpo feito de terra, como o que dizem que Deus criou. E a minha subversão é fazer um corpo de mulher direto do barro e não de uma costela roubada de um homem. Percebi que os poemas andavam juntos por um terreno que moldava seu movimento e ritmo.

Então, os seus textos vão se encaixando de acordo com sua evolução pessoal?

Os textos que formam o solo são aqueles em que estão plantadas as sementes do que dá forma à identidade e história, sejam pessoas, cenários, acontecimentos, memórias, afetos. A areia é fluída, pouco fértil e instável, como os poemas que falam de uma sexualidade negada, envergonhada, e uma identidade de gênero atravessada por dor e abuso. As cinzas parecem o fim, mas também podem proporcionar continuidade. Aprendi que o cerrado se adaptou ao incêndio, para sobreviver. A poesia nesse capítulo sangra, mas dizer essa ferida é também achar o caminho de estancá-la, e recomeçar do que parece ser terra arrasada, mas é possibilidade.

Como é estar realizando isso? 

Confesso que ainda estou tomada pela incredulidade. Ainda é difícil me nomear enquanto escritora. É difícil imaginar que uma mulher saída da periferia do DF, que viveu assombrada pela subalternidade, tenha achado casa para sua palavra num livro publicado por uma editora tão importante para a literatura contemporânea. Sem dúvida estou tomada por muita felicidade e orgulho. Especialmente por confirmar a importância da escrita de si, como ferramenta de marcar o que é político nos corpos e identidades. Para mim é um lembrete de que precisamos continuar escrevendo que somos mulheres, loucas, oprimidas, abusadas, aprisionadas pelas cidades e suas linhas divisórias invisíveis, que vivemos num país assolado pelo colonialismo e fascismo disfarçado de bons costumes. É preciso gritar todos os dias para não sermos esquecidas. E só pude fazer isso guardando em poesia os gestos da minha família, documentando o cotidiano que corre à margem do algoritmo, fotografando minhas pessoas com palavras, fazendo do pé descalço fincado ao chão matéria de poesia. Publicar este livro é também uma forma de reparação.

– Deixa seu poema preferido aqui:

Deixo abaixo o poema predileto do meu livro e o meu poema preferido da vida.

Pâmela Rodrigues, do livro “areia não é sujeira”

eu sou filha da sobrevivência

que, não por acaso,

é substantivo feminino

no meu mundo

as mulheres tiveram que ficar

no imperativo

os homens puderam partir,

e alguns foram

não que eles não estivessem lá

estavam

mas não ficavam

pois, se verbo tivesse gênero,

ficar

também seria feminino

eu trago incrustado no DNA

as dores da sobrevivência dessas mulheres

os horrores da miséria

fome

migração

violências

abandono

povoam minhas memórias

são nossas histórias de família

onde quer que a gente vá

esse peso vem acorrentado aos nossos pés

às vezes, se torna tão grande

que te impede de avançar

então você

fica

assim, no imperativo

a subalternidade também é feminina

outro dia minha avó se queixou que ela não pôde

ser adolescente

me doeu pensar que até isso lhe foi arrancado

nada dos outros para ela

tudo dela para os outros

a doação é feminina

já o saque, é masculino

mesmo quando eu vou longe

me sinto só e pequena

porque minhas ainda não estão ao meu lado

só dentro de mim

mas teimo

ora rompo barreiras

ora aproveito as portas que elas abriram

vou correr e ocupar o mundo inteiro

as levarei em mim

mas também comigo

quero lembrar ao mundo

que nós importamos

quero lembrá-las que

ainda há tempo para escrever novas histórias

antes de mim

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