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60 Anos, 60 Histórias

Uma capital por trás da profecia de Dom Bosco

Na série 60 anos, a fé deu o alvará necessário à construção da terceira capital do país, o sonho de JK

Redação Jornal de Brasília

09/03/2020 4h32

A política por trás da profecia

“Entre os graus 15 e 20, existia um seio de terra bastante largo e longo, que partia de um ponto onde se formava um lago. (…) Surgirá aqui a Terra da Promissão, fluente de leite e mel”
Trecho da profecia de Dom Bosco

Olavo David Neto e  Vítor Mendonça
[email protected]

A mensagem já estava no ar. Dada a partir de Anápolis, no interior goiano, a fala de Juscelino Kubitschek garantia a construção da terceira capital do Brasil no interior do país. O local já fora escolhido por diversos grupos de estudos, de Luís Cruls à Comissão de Localização da Nova Capital, inclusive com relatórios específicos da empresa norte-americana Donald J. Belcher — como já visto neste especial. Havia, porém, o medo da astúcia dos políticos mineiros, conhecidos por manobras espetaculares no apagar das luzes.

Para Goiás, receber a capital federal se mostrava como uma esperança para integrar o estado aos maiores centros da República. Num país governado por e para as potências litorâneas e agroexportadoras, faltava interesse em se voltar para dentro, onde sobrava miséria e desalento. Por isso, desde muito cedo os goianos se movimentaram em campanhas culturais — ou mesmo políticas — para receber, de braços abertos, o novo Distrito Federal. O Brasil interiorano via no dispositivo constitucional a chance de embarcar, pela primeira vez, no vagão principal do trem da história nacional.

Do esforço da bancada goiana nas Assembleias Constituinte de 1890/91, 1934 e 1946 à desapropriação da Fazenda Bananal (quase a totalidade do Sítio Castanho, indicado pela Belcher como um dos ideais a receber a capital) em fins de 1955, a participação do estado no mudancismo se deu de forma crucial, sobretudo no século XX. Uma trindade, porém, merece destaque nas ações finais para a edificação da terceira sede do poder nacional. E caberia a ela eternizar um frade italiano como aparente profeta do novo centro político brasileiro.

O sonho secreto

Dado em 1883, em Turim, na Itália, o suposto sonho no qual João Bosco antevê o surgimento de uma grande civilização no centro da América do Sul não era conhecido. Isto porque, à época, nem mesmo os membros da Ordem Salesiana — fundada pelo religioso — deram-se ao trabalho de escrutinar a vasta biografia do santo, canonizado em 1934. São 16.130 páginas divididas em 19 volumes escritos em italiano, que contêm sonhos declaradamente proféticos desde a infância até os últimos anos do sacerdote.

Em meio a tantas ditas profecias está o relato da viagem espiritual que o trouxe à área central do Brasil e lhe mostrou uma cidade fértil, “que verterá leite e mel”, como citado no oitavo texto desta série. Encomendada, a tradução da transcrição é vaga, delimita um enorme espaço geográfico (“entre os paralelos 15 e 20”) e, de fato, houve um forte empurrão dos políticos goianos para que o espaço da profecia viesse caber no Planalto Central. Além disso, há fortes indícios de adulteração no que realmente foi escrito em relação ao texto em português.

Em maio de 1956, o presidente Juscelino Kubitsheck confirmara presença na Exposição de Gado de Uberaba. Na comitiva estava também Israel Pinheiro, que viria a ser presidente da Novacap, e um dos deputados de Minas Gerais que defendiam a transferência da capital — mas para o interior mineiro, às margens do Delta do Parnaíba. Começou, então, uma tática guerrilheira dos mudancistas goianos para derrubar a resistência de Pinheiro à construção da futura principal cidade da República, que envolveu rádios, um livro e a fé do então deputado mineiro.

Governador de Goiás, José “Juca” Ludovico de Almeida — sobrinho de Pedro Ludovico, interventor do estado durante a ditadura de Vargas, em cujo mandato edificou-se Goiânia — já baixara, em 1º de maio (mas datado de 30 de abril), o Decreto nº 480/1955, pelo qual era “declarada de utilidade pública e de conveniência ao interesse social (…) a área destinada à Nova Capital Federal, e que (…) será oportunamente incorporada ao domínio da União”. Era ele a primeira ponta do tridente goiano.

O mesmo documento criou a Comissão de Cooperação para a Mudança da Capital Federal, iniciativa do estado para auxiliar o governo federal a retirar da Baía da Guanabara os maiores poderes do país. O presidente do órgão, Altamiro de Moura Pacheco — que desapropriaria a Fazenda Bananal — e o consutor jurídico, Segismundo Araújo de Mello, formavam com o chefe do Executivo local o trio de ataque mudancista de Goiás. E foram três dos envolvidos na criação da aura mística do Planalto Central.

A Operação Dom Bosco

Como dito na 24ª reportagem deste especial, Israel Pinheiro (foto) perdeu o pai ainda na mocidade, e a família, em sérias dificuldades financeiras, não conseguiria manter o menino na escola sem ajuda da Ordem Salesiana, que bancou-lhe os estudos. Nascia uma devoção pelo fundador da congregação, Dom Bosco, que motivou Pinheiro a edificar no casarão onde nasceu, em Caeté (MG), uma enorme estátuta do santo. “E na pesquisa do dr. Segismundo, ele descobriu isso sobre o Israel”, conta o jornalista Jarbas Silva Marques, ex-diretor do Instituto Histórico e Geográfico do DF.

Conforme conta Lourenço Fernando Tamanini em Brasília – Memória da construção, Juca Ludovico mandou redigir um livreto de nome A nova capital do Brasil – estudos e conclusões. Era tão somente uma obra que reunia diversos relatos de mudancistas favoráveis à escolha do Planalto Central em detrimento de outras áreas. Segismundo Mello, incumbido pelo governador para a organização do livro, tomou conhecimento de um artigo do ex-senador e então deputado federal por Goiás Alfredo Nasser no qual citava um sonho de um religioso italiano acerca da capital do Brasil.

Sem sucesso, Segismundo recorreu ao cunhado, Germano Roriz, que nutria forte ligação com os salesianos. Roriz, então, indicou o padre Cleto Caliman, à época diretor do colégio Anchieta, da cidade goiana de Silvânia. O religioso providenciou uma cópia do relato de Dom Bosco, além da tradução do trecho para o português. Entrevistado por Tamanini em 1982, Caliman confessa que Mello o questionou se haveria forma de tornar o suposto sonho em algo mais palpável. “O senhor poderia dar um jeito para que a visão tivesse mais um sentido de cidade, de civilização?”, perguntou o jurista ao sacerdote.

O padre até aceitou, mas, segundo Tamanini, eximiu-se de responsabilidade. Após reflexão, e para evitar questionamentos, Segismundo decidiu por uma saída “à goiana”: deixou o original no corpo da obra, mas legendou uma imagem de Dom Bosco com um texto deveras direcionador: “São João Bosco, que sonhou uma civilização, no interior do Brasil, de impressionar o mundo, à altura do paralelo 15º, onde se localizará a nova Capital Federal.” Nas palavras de Tamanini, “essa expressão (…), que não consta do sonho e nem foi usada por Dom Bosco hora nenhuma, acabou por se transformar na síntese oficial do sonho-visão”.

A entrega

Ao desembarcar em Uberaba, a comitiva se separou. Convidado pelo chefe do Executivo municipal, JK passou a noite de 3 de maio na casa de João Prefeito, como era conhecido o governante local. Israel, por sua vez, dirigira-se ao Grande Hotel. E para lá rumou Venerando Borges, primeiro prefeito de Goiânia e aliado de Ludovico, com uma cópia de A nova capital em mãos. Quando Pinheiro despontou no hall do hotel em direção aos elevadores, Borges seguiu o deputado. Entraram juntos na caixa metálica, e, malandro, o goiano deixou o título da obra à vista do mineiro.

O sucesso da empreitada veio quando Israel notou a obra nas mãos do colega de elevador. “Ô, moço, você poderia me emprestar esse livro?”, questionou o futuro presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital. Esse momento é narrado como clímax na obra de Lourenço Tamanini. “Selava-se, naquele momento(…), a rendição do último baluarte de resistência, e os goianos puderam respirar aliviados e voltar para casa”, narra o historiador.

Mas por que uma história inventada colou?

Sitio Modificado – Monumentos – Foto : Arquivo Público do DF

Como mencionado em algumas oportunidades nesta série, Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência em uma época de forte turbulência política. Era o quarto mandatário federal em menos de dois anos a assumir o poder desde o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e só tomara posse graças a uma forte resistência legalista liderada pelo marechal Henrique Teixeira Lott. JK governou tendo forte oposição no Congresso Nacional, cuja maior bancada pertencia à União Democrática Nacional (UDN), sigla liderada pelo jornalista Carlos Lacerda, eleito pelo então Distrito Federal.

Além do puro e simples antagonismo, os adversários do governo enxergavam a construção de uma cidade que abrigaria os maiores poderes do país como um empreendimento caro e desnecessário. Tais argumentos também foram utilizados por legisladores contrários à transferência da capital nas Assembleias Constituintes cujas Cartas promulgadas previam a interiorização do Poder Público.

Por isso, o capital político oriundo de uma suposta antevisão daquela cidade que Juscelino prometera ao jovem Toniquinho em Jataí (tema da 21ª edição deste especial) era enorme. E necessário.

Numa população majoritariamente católica, a ideia de um santo que previu um movimento de tamanha envergadura se mostrava quase como uma obrigação religiosa. Mesmo que o Estado fosse laico — ao menos no papel — desde 1889, com o golpe republicano, a fé deu o alvará necessário à construção da terceira capital do país, a segunda sob a égide da República, e a primeira planejada.

Para Israel, bateu-se o martelo quanto ao local a ser erigida a empreitada. Se o santo no qual depositara fé desde a morte do pai dizia, não seria ele o teimoso.

A manobra dos mudancistas goianos foi de tal primazia que a primeira obra de argamassa do então canteiro de obras que viria a ser Brasília foi justamente um homenagem ao sacerdote italiano.

Erguida às margens do futuro Lago Paranoá, a Ermida Dom Bosco representou, para o presidente inaugural da Novacap, a certeza de que o esforço empreendido no cerrado quase intocado tinha respaldo celestial.

Preso pelo regime instaurado em 1º de abril de 1964, Jarbas Silva Marques atribui aos militares a consolidação da narrativa de Dom Bosco como profeta de nossa terceira capital. “A narrativa é aproveitada pela Ditadura Civil-Militar para fazer esquecer que quem construiu Brasília foi o presidente Juscelino”, conta o jornalista. JK tornara-se inimigo do Estado brasileiro, sendo a versão que ganhou a História, na verdade, um golpe à memória do “presidente sorriso”. “E até hoje os idiotas fazem o jogo, dizendo que Brasília foi construída pelo sonho de D. Bosco, e não pela luta do povo brasileiro”, finaliza Marques.

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