Menu
60 Anos, 60 Histórias

Em Planaltina, a pedra fundamental

“No meio do caminho tinha uma pedraTinha uma pedra no meio do caminhoNunca me esquecerei desse acontecimentoNa vida das minhas retinas fatigadas”

Olavo David Neto

17/02/2020 6h37

Atualizada 18/02/2020 8h01

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

Iniciada junto com o governo de Prudente de Moraes, a política Café com Leite se manteve no poder durante grande parte da Primeira República, inicialmente, com os mandatos de Campos Sales, que entrou no século XIX na Presidência, e, já em 1902, com Rodrigues Alves.

Citado no segundo capítulo desta série, Alves ficou conhecido por sanear o Rio de Janeiro, cidade cercada de mazelas médico-sanitárias. Neste sentido, é possível imaginar que uma ação tão forte do governo — que inclusive levou à Revolta da Vacina — tenha tranquilizado as mentes mais ilustres da República e engavetado a única tentativa de cunho mudancista até 1906, quando o então presidente deu lugar a Afonso Pena.

Em 1905, o senador Joaquim Nogueira Paranaguá, filho do também parlamentar João Nogueira Paranaguá, seguiu os caminhos do pai e apostou no projeto mudancista. O genitor havia dados os primeiros passos para a realização da Missão Cruls, em 1892, e o segundo Marquês de Paranaguá manteve na família o espírito. É dele o projeto apresentado ao Senado sob o número 30/1905 que autoriza a mudança da capital “para o lugar já demarcado, no Planalto Central”, e estipula o prazo para transferência dali a 16 anos, em 1921, às vésperas dos 100 anos da Independência. A ideia era que o Brasil comemorasse um século de soberania política com uma nova sede do poder nacional. Tal desejo seria reduzido a uma pedra, um marco.

Seis anos depois, sob o governo de Hermes da Fonseca, os deputados federais Eduardo Sócrates, Caiado Ramos, Bulhões Marcial e Bethencourt Filho apresentaram o Projeto de Lei 223/1911, de outubro, que autorizava o governo brasileiro a abrir licitação “no país e no estrangeiro” para o “estabelecimento da capital da República no Planalto Central”. Pelo texto, a empresa vencedora também se obrigaria a “construir uma estrada de ferro ligando a nova capital” ao resto do país. Vale lembrar que nenhuma dessas medidas foi aceita no Congresso Nacional.

Passados 36 meses, a demarcação do Quadrilátero Cruls completava 20 anos, e nestas duas décadas poucas medidas de caráter efetivo foram tomadas. Ao final do ano legislativo, no dia 23 de dezembro, o projeto 246/1914 chegou à mesa do Parlamento. Por ele, o governo federal do mineiro Venceslau Brás poderia emitir crédito “para execução do dispositivo constitucional relativo à construção e mudança da futura capital da República”. Era uma resposta, mesmo que tardia, à solicitação de Luís Cruls no Relatório Parcial da Comissão de Estudos da Nova Capital, de 1896, cujos trabalhos foram interrompidos por falta de verba — como dito na 11ª reportagem deste especial.

Apresentaram o Projeto de Lei o paranaense Corrêa de Freitas; Camilo Prates, integrante, no parlamento mineiro, da comissão que propôs a construção de Belo Horizonte, nova sede do poder mineiro, inaugurada em 1897; e, curiosamente, o político e escritor Maurício de Lacerda, conhecido por defender operários comunistas. É curioso porque o parlamentar era pai de Carlos Lacerda (à época um bebê de quase seis meses), que viria a ser uma das figuras mais conservadoras da política brasileira, opositor de Juscelino Kubitschek e da construção de Brasília. Esse ícone conservador, porém, veremos mais adiante nesta série.

O sonho dos goianos e a caneta do paraibano

O sucessor de Brás padeceu da Gripe Espanhola, epidemia algoz de ao menos 50 milhões de pessoas mundo afora, e morreu pouco antes de voltar ao poder depois de uma dúzia de anos. No lugar de Rodrigues Alves, assumiu o vice eleito em 1918 — por chapa diferente —, Delfim Moreira. Com novas eleições em abril de 1919, ascendeu à Presidência o paraibano Epitácio Pessoa. E coube ao primeiro presidente nordestino — até então o único da região a governar o Brasil independente – sancionar um projeto que visava a alargar o alcance nacional.

Após nova inércia, desta vez de sete anos, o Congresso recebeu outra proposta referente à interiorização da capital, mais concreta, ainda que simbólica, e que inflamou novamente os brios da luta mudancista. Em 7 de dezembro de 1921, os deputados Rodrigues Machado, do Maranhão, e Americano do Brazil, de Goiás, propuseram o PL 680/1921, que, aprovado, propunha o lançamento da pedra fundamental “no planalto central de Goiás ao meio-dia de 7 de setembro de 1922.”

Um mudancista às margens da futura capital

Antônio Americano do Brazil nasceu em 1892, no município de Bonfim, atual Silvânia, Goiás. Capitão do Exército por serviços de medicina, ingressou na política no estado natal ao assumir a Secretaria de Interior e Justiça. Antônio tinha uma motivação quase teimosa: a mudança da capital. Tanto é que fundou algumas revistas onde tratava do assunto, sendo A Informação Goiana, de 1917, a principal delas.

Como companheiro na empreitada, um nome de respeito: Henrique Silva, membro da Comissão Exploradora do Planalto Central. Assim, com o peso de alguém responsável pela primeira demarcação da nova capital, passou a abrir espaço para novas manifestações.

“O clima dos sertões, exceto nalguns poucos lugares, facilmente saneáveis, é salubérrimo e, até ouso asseverar, exclui a intervenção médica”, escreve um médico na edição de maio de 1918 do periódico mensal. Além das questões higiênicas, os artigos também abordavam a facilidade de uma integração nacional com uma sede de poder plantada no centro geográfico do país. Com esse discurso, elegeu-se em 1921 deputado federal pela primeira e única vez.

Foi neste período que Americano se uniu a um maranhense e propôs a pedra fundamental no vértice NE demarcado pela Missão Cruls. Talvez pareça apenas o “chafariz na praça” feito por governantes para dar à população a impressão de competência, mas não é. A proposta reacendeu a discussão mudancista, sobretudo em Goiás, que contaria, em breve, com políticos e personalidades determinadas a trazer para o Centro-Oeste a capital da nação.

O projeto englobava praticamente todos os pontos abordados nos esboços apresentados até então. Na terceira semana de janeiro, o presidente paraibano Epitácio Pessoa – cuja família ainda impactaria o movimento mudancista, mais à frente – sancionou a decisão do Legislativo, estabelecendo que a nova capital “será oportunamente estabelecida no planalto central da República”, numa área de 14.400 km² “devidamente medidos e demarcados”. Ou seja, mais uma vez, a Missão Cruls era tida como referência.

Seria o primeiro centenário da Independência, gritada pelo regime deposto em 1889 pelos republicanos. Também se configurou o projeto de Machado e Brazil como a primeira relação efetiva entre o mudancismo e a emancipação brasileira. Para a celebração, o mês de agosto fez chegar um telegrama do ministro de Viação e Obras Públicas, José Pires do Rio, a Araguari, em Minas Gerais, ordenando que “ali proximamente no lugar mais preconizado pela antiga comissão de demarcação Planalto fareis lançar pedra fundamental e fixar marco dia 7 Setembro ao meio dia.”

A cerimônia, obviamente realizada no dia da Independência, contou com a publicação de Americano do Brazil na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), onde contava um resumo da História de Goiás. Mau sinalizada e sem asfalto nas redondezas, atualmente a pedra fundamental parece estagnada no tempo. Pouco importância é atribuída a ela, que fica a oito quilômetros do centro de Planaltina, principalmente pela diferença de quase quatro décadas entre seu estabelecimento, dado com certa pompa e alguma circunstância, e a transferência da capital da República.

A inauguração da pedra fundamental da nova capital na cidade de Planaltina foi um dos poucos respiros da atividade mudancista durante a República Velha. Foto: Arquivo Público do DF

Uma Parceria Público-Privada para a nova cidade

São raras as menções na historiografia, mas um requerimento apresentado em 1910 quase tornou Brasília uma grande Parceira Público-Privada, em moldes semalhentes aos que se tornaram comuns ultimamente para construir estádios e outras obras. Arthur Schindelar, que já criara um novo sistema de taquígrafo na Inglaterra, propôs ao governo brasileiro que empresas privadas se encarregassem da construção da nova capital da República.

A disputa presidencial nos jornais em 1919.Morte de Rodrigues Alves abriu necessidade dasucessão, cujos principais candidatos foram osnordestinos Epitácio Pessoa e Ruy Barbosa. Foto: Reprodução

No documento, Schindelar passa por alguns argumentos históricos do mudancismo para sugerir que a União permitisse a edificação de uma cidade que estaria, por quase um século, nas mãos das empreiteiras.

Ficaria encarregada a empresa escolhida de construir a capital, bem como “esgotos do sistema mais moderno”, abrindo mão de pagamento para edificar os prédios “precisos para os departamentos do Governo”. Também caberia aos empresários erguer casas “para os empregados públicos” e lidar com toda a infraestrutura de comunicação (telégrafos) e transportes (trens e bondes), bem como “colonizar e povoar todo o Distrito Federal”. Se comprometeriam os responsáveis a “começar as obras seis meses depois da aprovação das plantas” e concluí-las “cinco anos depois do começo dos trabalhos”.

O contrato forçaria o governo a se mudar para a nova cidade em dez meses, mas não era só. Ficavam reservadas a quem construísse a terceira capital do Brasil, pelos 90 anos subsequentes, “os serviços de esgoto, abastecimento d’água, fornecimento de força, luz e tração elétricas, telefone e estradas de ferro.” Ou seja, uma única empresa, ou consórcio, deteria os serviços públicos mais elementares de uma sociedade até o segundo milênio (2005, na hipótese mais otimista, ou 2006, nas ideias mais contidas).

Schindelar ainda sugeriu que fossem zerados os fretes nas linhas de trem e as tarifas alfandegárias para importar o material necessário à empreitada. Também exigiu que entrasse em vigor um decreto que lhe favoreceria, num caso pitoresco de lobby “dentro da lei”. Para finalizar, exigia do governo uma isenção fiscal de 35 anos a quem edificasse a nova capital. Para tal, fica claro no documento, disponível na Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, que as expedições comandadas por Luís Cruls, morto dois anos antes, e pagas com dinheiro público, seriam usadas como norte.

AMANHÃ: A era Vargas rejeita o mudancismo

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado