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60 Anos, 60 Histórias

As obras do começo

JK se une a outros torcedores para ouvir pelo rádio a vitória da Seleção Brasileira de Garrincha, Didi e Pelé, entre outros na Copa do Mundo de 1958

Redação Jornal de Brasília

16/03/2020 5h49

Olavo David Neto e  Vítor Mendonça
[email protected]

Cruzada por estradas de terra, tomada por uma dança misteriosa de homens e máquinas para erigir prédios indispensáveis ao funcionamento de uma capital da República, Brasília, aos poucos, moldava-se no horizonte de um Planalto Central até então inabitado. Turnos de 16 horas eram empreendidos pelos candangos que deixavam sangue e suor nas obras, sem qualquer tipo de proteção física ou trabalhista. Encantados pela odisseia à brasileira que se desenrolava no interior de Goiás, levas e mais levas de trabalhadores se uniam à empreitada mensalmente.

No ano de 1956, a densidade demográfica do canteiro de obras e seu entorno era de um habitante/km², índice que dobraria em pouco mais de doze meses, e chegaria a 2,1 habitantes/km², de acordo com censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No período, o crescimento populacional se deu na ordem de mil pessoas por mês, sobretudo oriundas de Goiás, Minas Gerais e Bahia. Eram pedreiros, serventes, carpinteiros e toda a ordem de trabalhadores braçais que vinham prestar auxílio ao sonho de um novo centro de poder para o Brasil.

Enquanto picaretas, enxadas e martelos compunham a sinfonia candanga, líderes de outros países voltavam as atenções para a empreitada brasileira. Em 20 de junho, desembarcou no então recente aeroporto de Brasília o presidente português Craveiro Lopes, episódio que marcou a primeira visita de um chefe de Estado à nova sede do poder brasileiro. Conforme conta Ernesto Silva em História de Brasília, o lusitano “percorreu todas as obras e hospedou-se no Catetinho”.

Francisco Craveiro Lopes presidiu Portugal durante o Salazarismo, período entre 1932 e 1968 no qual as terras lusas foram chefiadas por Antônio Salazar, fascista e aliado de fascistas como o espanhol Francisco Franco, o italiano Benito Mussolini e o nazista Adolf Hitler. O português desembarcou na terra de JK para conhecer a futura capital da antiga colônia e até sede do império ultramarino lusitano.

Na obra Do Catetinho ao Alvorada, espécie de diário da construção escrito por César Prates, o autor registra que, às 22h, a primeira-dama do país europeu, Berta Craveiro Lopes, buscou Sarah Kubitschek para um pedido especial. “Dona Berta revelou, então, à Dona Sarah, que o General Craveiro Lopes, para poder dormir, precisava de ter, sob a cama, um urinol”, relata. O objeto foi providenciado à 1h15, conforme o escrito.

Os palácios: um hoteleiro; outro residencial

O primeiro projeto de palácio, apresentado na visita inaugural de JK a Brasília, em 2 de outubro de 1956, desagradou ao presidente. “O que eu quero, Niemeyer, é um palácio que, daqui a cem anos, ainda seja admirado”, disse Kubitschek ao arquiteto. Nem mesmo 24h se passaram e lá vinha o homem do traçado genial apresentar outro rabisco, que desta vez ganhou aval do chefe do Executivo. Assim, Juscelino determinou o início imediato das obras, que começaram, de fato, em dezembro.

Dotado de arquitetura relativamente simples, como característica de Oscar Niemeyer, o Palácio da Alvorada se destaca pelas colunas que encerram a fachada da residência presidencial. Remontando obras gregas, os objetos, porém, têm apenas um pequeno ponto de apoio ao chão, algo que permite uma interpretação de que o governo pode alçar voo, mas deve se manter atrelado ao terreno que sustenta todos os brasileiros. Construído em 18 meses, o edifício era previsto mesmo antes da concorrência que definiu o Plano Piloto da nova capital, em março de 1957. As obras ficaram sob a responsabilidade da construtora Pacheco Fernandes.

Nas vizinhanças, uma outra empreitada destinada a repouso também era tocada. O Brasília Palace Hotel não chega a ser a primeira hospedaria do Planalto Central — perde para os hotéis Brasília e Souza, ambos construídos na Cidade Livre —, mas é um projeto inaugural do empenho do governo federal na construção da capital da República. Edificado pela construtora Rabelo, foi concluído pouco antes do Alvorada e chegou a receber representações internacionais.

Visitante inglório

Entre os visitantes estrangeiros que estiveram em Brasília na sua construção está o ditador paraguaio Alfredo Stroessner, condenado em 2016 pela reclusão de crianças e pela formação de uma espúria e coordenada rede de “pedofilia estatal”. Mantinha no bairro de Sajonia, em Assunção, escravas sexuais entre 8 e 15 anos. Stroessner foi hóspede do Brasília Palace um mês antes da inauguração. Apaixonou-se por Brasília e voltou ao Planalto Central depois de deposto da Presidência guarani. Aqui morreu, em 2006.

“Recebemos a ilustríssima visita do presidente do Paraguai”, relata Juscelino em Por que Construí Brasília. Ernesto Silva, em História de Brasília, comemora os serviços prestados ao ditador. “A dois de maio, Brasília recebe a visita do presidente do Paraguai, general Alfredo Stroessner (…), sendo ali realizado imponente banquete em homenagem àquele visitante”, relatou Silva.

Nos gramado suecos, a representação da mudança

As duas obras que marcariam uma virada na construção de Brasília – apesar de não serem as primeiras edificações, como visto na reportagem 24 desta série – chegavam ao fim sem maiores problemas. Como dito, o Brasília Palace até recebera hóspedes, e o Alvorada já “pousara” às margens do Paranoá. No dia 29 de junho, Juscelino deixava o Rio de Janeiro para desembarcar na futura capital e inaugurar os dois prédios, mas o Brasil vivia uma euforia aparentemente alheia à capital.

“A inauguração (…) coincidiu com um acontecimento que, desde havia um mês, vinha empolgando a opinião pública. Tratava-se do Campeonato Mundial de Futebol”, relatou na obra citada anteriormente. Também envolvido pelo clima de final, o clã Kubitschek chegou ao canteiro de obras e deparou com mais um pedaço do Brasil paralisado pela campanha canarinho na Suécia. JK, então, cancelou a agenda e se dirigiu ao Palace Hotel para acompanhar a partida. “Torci e me exaltei como todos os candangos que se aglomeraram à porta do hotel”, relata.

Uma campanha perfeita

Lotado no Grupo A, o Brasil estreou na Copa do Mundo de 1958 com uma vitória por 3 a 0 sobre a Áustria, com dois gols de Mazzola e um de Nilton Santos. Na sequência, empatou sem gols com a Inglaterra e bateu a União Soviética com dois gols do atacante Vavá. Nas quartas-de-final, o selecionado brasileiro contou com o gol único do menino Pelé, então com 16 anos, para passar pelo País de Gales.

Apenas contra a França, nas semis, o escrete nacional sofreu os dois primeiros gols no certame. Em contrapartida, Vavá, Didi e o tal do Edson Arantes do Nascimento (3x) fecharam o placar em 5 a 2. O Brasil estava, então, credenciado a decidir uma Copa do Mundo pela segunda vez – lembrando que, em 1950, não houve um jogo final, mas um quadrangular decisivo entre brasileiros, uruguaios, suecos e espanhóis.

O adversário da final já havia cruzado o caminho verde e amarelos oito anos antes, e naquela ocasião se deu o único 7 a 1 que merece ser lembrado no futebol nacional, favorável aos sulamericanos. Superiores fisicamente, os suecos tinham, em 1958, campanha similar a de Garrincha, Pelé, Didi e companhia: foram quatro vitórias e um empate para cada lado. O gol de Liedholm, aos quatro minutos, deu um banho de água fria no ímpeto brasileiro, mas também trouxe um mito à tona.

Ainda adolescente, Pelé buscou a bola no fundo do gol e, de peito inflado e cabeça erguida, recolocou a esférica no centro do gramado. Era uma espécie de exorcismo do fantasma de 1950, o Maracanazo. Cinco minutos depois, Vavá empatou a partida, e o primeiro tempo terminou igual. Na volta, aos dez, Pelé virou, e aos 23’ Zagallo ampliou. Simonsson chegou a descontar, mas Pelé fechou o placar em 5 a 2. Na bagagem de volta, a taça de campeão do mundo para o Brasil.

“A taça do mundo é nossa
Com brasileiro não há quem possa
Eh êta esquadrão de ouro
É bom no samba, é bom no couro”
Wagner Maugeri, Lauro Müller, Maugeri Sobrinho e Victor Dagô em “A taça do mundo é nossa”

Um novo Brasil

A primeira metade da década de 1950 foi dura para o Brasil. No esporte, a mencionada derrota para o Uruguai na jogo decisivo da Copa do Mundo sediada em terras de Tupã abalou o sentimento nacionalista e aprofundou o “complexo de vira-latas” do povo brasileiro.

No campo político, apesar da volta — “nos braços do povo” — do ex-ditador Getúlio Vargas, a instabilidade com a qual governou o presidente, o escândalo do atentado da Rua Toneleros, vista na 19ª reportagem, e o subsequente suicídio do chefe do Executivo desmontaram a nação.

Vieram a crise sucessória e as expectativas de subversão da ordem político-legal vigente até então. Num país recém-democratizado, o receio de um novo golpe civil-militar era palpável. Assim, a posse de JK, a conquista do mundo futebolístico já em 1958 e a própria construção de Brasília são episódios que apontam para um renascimento brasileiro após um período deveras sombrio.

Nas palavras do próprio presidente, em telegrama enviado aos jogadores quando do término da partida final, a vitória em campo significava muito mais que uma conquista esportiva. “É o Brasil novo que começa a conquistar suas vitórias. É o Brasil de Brasília que, plantado no coração da pátria, tem agora um espírito novo a dirigir-lhe os destinos”, escreveu Juscelino. A epopeia no Planalto Central representava uma capital novinha em folha para um país que deixava o passado para trás e se voltava ao futuro.

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