SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
No palco do Teatro Santos Augusta, a partir de 11 de outubro, Ana Lúcia Torre apresenta “Olhos nos Olhos”, um espetáculo que marca seus 80 anos de vida e 60 de carreira. Num exercício de intimidade raro, ela entrelaça suas memórias mais profundas com a obra de Chico Buarque, criando um diálogo comovente entre vida pessoal e história coletiva.
O espetáculo nasceu de forma quase casual, durante conversas com o diretor Sergio Módena. “Um dia eu estava no aniversário da Mariana Rosa, conversando com o Sergio, e ele falou: ‘Vamos fazer alguma coisa'”, recorda Ana Lúcia. O ponto de partida foi uma antiga brincadeira onde ela interpretava letras de Chico Buarque, sem cantá-las. Mas o projeto foi além, transformando-se numa jornada autobiográfica que revela pela primeira vez passagens marcantes de sua vida.
Uma dessas revelações é sua experiência como presa política. Em 1975, Ana Lúcia foi detida pelo DOI-Codi ao retornar ao Brasil.
“Queriam que eu delatasse pessoas que estiveram em cartaz comigo no espetáculo ‘Morte e Vida Severina’ no TUCA em 1965”, conta. Ela chegou a passar seu aniversário de 30 anos na prisão, uma experiência que guardou por décadas. “Fiquei doente. E quando eu voltei, eu voltei outra pessoa.”
O processo criativo foi profundamente terapêutico. “Cada dia o Sergio trazia um pouco de texto e a gente ia vendo. Como foi lindo eu poder falar!”. As sessões de trabalho aconteciam de forma caseira – ora na casa dela, ora na do diretor – e contavam com a fundamental contribuição da assistente de direção Mariana Rosa, que ” me compreende mais que eu a mim mesma”, brinca Ana Lúcia.
A maternidade, inicialmente de fora do roteiro, foi incluída por sugestão de uma amiga, enriquecendo a narrativa e expondo a complexidade da mulher por trás da artista. Ana Lúcia foi mãe de Pedro Lobo, que assina a direção do espetáculo, aos 40 anos um feito incomum para a época, que aconteceu de forma natural após ter desistido de tentar engravidar.
A escolha pela obra de Chico Buarque como fio condutor não poderia ser mais natural. Ana Lúcia e o compositor são da mesma geração e testemunharam juntos as transformações do país. Suas trajetórias se cruzaram em momentos fundamentais: ela integrou o elenco de “Morte e Vida Severina”, primeiro musical de que Chico participou, e anos mais tarde ele compôs “Suburbano Coração” para o espetáculo homônimo onde ela também atuava.
“Eu acho o Chico o nosso grande historiador”, reflete a atriz. “Chico conta a história do nosso país em todas as suas camadas. Ele fala daquela mãe que não tem nome, mas tem voz e fala de ‘Meu Guri’. Ele fala dessa camada de gente que é considerada pela nossa sociedade a escória. Ele fala de coisas sublimes como o amor.”
Durante seus sete anos e meio na Europa, os discos enviados pela mãe eram sua conexão vital com o Brasil distante. “Tem um deles, que eu me lembro até hoje, que na hora que eu ouvi, eu fiquei num arrepio que só passou no dia seguinte.”
A opção por falar as letras em vez de cantá-las revela novas camadas de significado na obra do compositor. “Às vezes, eu me inflamo. Aí o Sergio diz: ‘Não, volta'”, explica Ana Lúcia sobre o processo com o diretor. “Porque você vai naquela… não na música, mas naquela emoção.” Em alguns momentos, como em “Geni” e “Pedaço de Mim”, a emoção é inevitável – “aí tem que ter uma emoção que não tem como segurar”.
Sergio Módena descreve o espetáculo como “uma conversa olho no olho com Ana Lúcia Torre, como se estivéssemos na sala de sua casa ouvindo suas histórias de vida”. Letras icônicas como “Olhos nos Olhos”, “Cálice” e “Apesar de Você” conduzem a atriz na interpretação de temas variados como amor, política e sociedade, sempre apresentadas de forma inédita.
O reencontro com suas próprias memórias trouxe descobertas surpreendentes. “Eu fui criada com a cobrança constante de ser perfeita. A criança que sempre foi elogiada por nunca dar trabalho cresce querendo fazer tudo sozinha pra não atrapalhar ninguém’. Eu sou isso. Era. Agora eu tô tentando não ser mais.”
Nascida em São Paulo em 1945, Ana Lúcia Torre descobriu seu amor pelas artes cênicas ainda na escola primária. “Quando tinha uma festinha, me chamavam para declamar. Olha aí! Desde menina.” Formada em Ciências Sociais pela PUC-SP, onde iniciou sua carreira no TUCA, ela só faria sua estreia profissional aos 30 anos em “Equus”, dirigida por Celso Nunes.
Sua trajetória no TUCA foi marcante. “Foi um dos momentos mais importantes do teatro brasileiro. Nós não éramos de escola de arte dramática. Eu fazia ciências sociais, um fazia filosofia, outro fazia arquitetura. Nós éramos estudantes que tínhamos uma proposta revolucionária para a época.” Anos depois, perceberia a grandiosidade daquele momento: “A música foi do Chico, o planejamento visual foi do Cláudio Tozzi, a Márika Gidali fez a coreografia, o maestro Júlio Medaglia ensaiou o coral”.
Desde então, construiu uma carreira sólida no teatro, cinema e televisão, com personagens marcantes como a vilã Débora em “Alma Gêmea” e Neca em “O Cravo e a Rosa”, onde contracenava com o amigo Pedro Paulo Rangel, mas sempre mantendo sua devoção primordial pelo teatro. “É a minha formação. Aqui eu me sinto bem”, diz sobre o palco.
Aos 80 anos, Ana Lúcia não demonstra interesse em parar. “Eu quero continuar com a minha viola na rua, cantando”, brinca. Seu fisiatra, ela conta, já a alertou: “A partir da sua estreia, nós vamos trabalhar como é que você vai chegar aos 85”. Mas o que realmente importa para ela é transmitir uma mensagem mais ampla.
“Primeiro que, para mim, agora, nesse momento, é que as pessoas vejam que uma pessoa de 80 anos não precisa ficar em casa, porque ela tem uma história e essa história precisa ser contada”, defende. “Não é história da Ana. É a história do brasileiro. Porque muitos de nós passamos exatamente pelas mesmas coisas.”
“Olhos nos Olhos” é o testemunho vivo de uma artista que continua escrevendo sua história, palavra por palavra, sabendo que o palco é sua verdadeira casa e que ainda há muito por compartilhar. Uma mulher que, aos 80 anos, carrega nas costas não apenas suas memórias, mas a história de uma geração que viu o Brasil “crescer às vezes para frente, às vezes para trás, mas a gente está aqui”.
OLHOS NOS OLHOS
- Quando Sáb. 20h; dom., 18h. De 11 de outubro a 9 de novembro
- Onde Teatro Santos Augusta – Alameda Santos, 2.159, Jardins
- Preço De R$ 120 a R$ 160
- Classificação 12 anos
