Há diretores que filmam uma cidade — e há os que deixam a cidade filmar por eles. Kleber Mendonça Filho pertence ao segundo grupo. Em O Agente Secreto, que chega com sessões antecipadas neste sábado (25), Recife não é cenário: é organismo vivo, respirando entre becos, gritos, blocos e janelas entreabertas de 1977. Sob o sol febril do Carnaval e a sombra opressora da Ditadura, o diretor constrói um suspense político que transforma a memória em campo de batalha e o cotidiano em resistência.
Marcelo, vivido com inquieta sobriedade por Wagner Moura, chega à capital pernambucana com o semblante de quem já sabe demais. Sua missão é incerta; seu destino, traçado. É um homem jurado de morte, tentando escapar de algo que nunca se revela por completo. Entre o ronco do Fusca amarelo e o eco dos frevos nas ladeiras, o filme mergulha em uma atmosfera quase alucinada, em que a festa popular e a perseguição política se confundem. A paranoia dança junto com a multidão.

Kleber constrói essa tensão sem pressa — e sem truques. O que move o filme não é o susto, mas o rumor. Cada olhar atravessado, cada sirene distante, cada estalo de fogos que soa como tiro alimenta uma inquietação crescente. O suspense se instala nos interstícios: no que não é dito, no que o espectador precisa decifrar. É nesse jogo de silêncios que O Agente Secreto se distingue dos thrillers convencionais — sua ação é interna, intelectual, quase arqueológica.
A ironia é a chave-mestra. Marcelo carrega o título de “agente secreto”, mas não é espião — é vítima. Um homem comum tragado pelas engrenagens invisíveis de um Estado paranoico, onde todos observam e são observados. O filme subverte o clichê do herói político: o protagonista não tem ideais inflamados, apenas medo. E esse medo, tão humano, reflete um país que aprendeu a desconfiar até do próprio reflexo.

Ao abordar a repressão, Kleber evita o tom solene e aposta na ironia cortante. Recife é retratada como um corpo coletivo: festivo, contraditório e violento. As cenas do Carnaval — vibrantes, caóticas — misturam suor e sangue com naturalidade. O riso e o perigo se tocam o tempo todo, como se a cidade dançasse à beira do abismo. Há algo de cruel e cômico em ver personagens tentando se proteger enquanto uma senhora, impagável Tânia Maria, decide “botar uma música” para espantar o medo. Humor como resistência — e também como nervo.
Visualmente, o filme é um banquete. A fotografia de Evgenia Alexandrova acende o amarelo dos carros, o vermelho dos confetes, o azul das madrugadas — uma paleta que beira o delírio tropical. A câmera parece sempre à espreita, observando pelos cantos, como se o próprio Recife fosse o espião. O som, por sua vez, é personagem pleno: portas rangendo, motores ronronando, vozes distantes compondo uma trilha de tensão e memória. Kleber entende que o som também é uma forma de vigiar.

Estruturado em capítulos, O Agente Secreto funciona como um diário fragmentado de um país em transe. Cada parte é peça de um quebra-cabeça maior — não apenas o da narrativa, mas o da própria história brasileira. É como se o diretor lembrasse que compreender o passado exige paciência, pesquisa e escuta. Que toda conspiração política é, antes de tudo, um problema de memória: o que se apaga, quem apaga e por quê.
Há ecos de seus trabalhos anteriores — o medo doméstico de O Som ao Redor, a vigilância de Aquarius, a violência simbólica de Bacurau. Mas este novo filme vai além: é o mais maduro, o mais político e o mais melancólico de Kleber. Um acerto de contas com o país e consigo mesmo, feito por meio do cinema — essa arte que documenta o invisível e denuncia o que o poder tenta silenciar.

Na reta final, quando o tempo parece se dobrar sobre si mesmo, O Agente Secreto revela que nunca falou apenas de 1977. Fala de nós, de agora. Da sensação de andar por um Brasil onde o riso ainda se mistura ao medo, onde a alegria convive com a violência institucional, e onde sobreviver continua sendo um ato de resistência. O filme termina, mas a história segue reverberando — como eco de frevo em rua vazia depois do desfile.
Conclusão
Kleber Mendonça Filho transforma o passado em espelho e o cinema em arquivo vivo. O Agente Secreto é uma obra sobre ver — e sobre não poder deixar de ver. Um lembrete incômodo e necessário: a festa passa, os mortos ficam. E o país, esse agente secreto de si mesmo, ainda tenta entender de que lado da história está.
Confira o trailer:
Ficha Técnica
Direção: Kleber Mendonça Filho;
Roteiro: Kleber Mendonça Filho;
Elenco: Wagner Moura, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Alice Carvalho, Udo Kier, Thomás Aquino, Isabél Zuaa, Carlos Francisco, Robério Diógenes, Hermila Guedes, Laura Lufési, Kaiony Venâncio;
Gênero: Drama;
Duração: 158 minutos;
Distribuição: Vitrine Filmes;
Classificação indicativa: 16 anos;