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Nada de luxo: jogadores de futebol no interior de GO explicam como ganham a vida além das 4 linhas

Mais da metade dos boleiros catalogados nos sistemas da Confederação (55%) ganham até um salário mínimo

Redação Jornal de Brasília

01/03/2023 21h24

Foto: Arquivo pessoal

Thiago Quint
(Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB)

Cinco milhões e trezentos mil reais por mês. Este é o montante formado pelos três maiores salários do futebol brasileiro, os de Dudu, do Palmeiras, e de Gabriel Barbosa e Arrascaeta, do Flamengo. A grande quantia que mantém a vida luxuosa de jogadores de futebol, no entanto, representa apenas 0,1% dos 11.551 contratos profissionais registrados na Confederação Brasileira de Futebol, a CBF.

Longe dessa realidade, estão histórias como as do atacante Junnior Batata, morador de Valparaíso de Goiás (GO), ou do goleiro Léo Unamuzaga, de Itumbiara (GO), que espelham a “outra face do futebol”.

O estudo da auditoria Ernst & Young (EY), encomendado pela própria CBF, mostra que essa realidade paralela ao estereótipo que se vê nas quartas-feiras e domingos é maior do que aparenta ser. Mais da metade dos boleiros catalogados nos sistemas da Confederação (55%) ganham até um salário mínimo. Eles são os verdadeiros prejudicados dentro de um esporte que, em 2018, chegou a movimentar quase R$ 1 bilhão em valor total de salários.

O problema é que, assim como a estrutura social do Brasil, o futebol por aqui é marcado pela desigualdade. De todo o valor movimentado em salários, 80% dele é concentrado em somente 7% dos atletas. O cenário fica mais claro no momento em que a comparação é feita por regiões do país. O Sudeste, lar dos maiores clubes e centros econômicos brasileiros, aloja 64% dos salários dos jogadores.

O impacto disso é sentido não só no campo, mas também fora dele. De acordo com a psicóloga esportiva Gabriela Rozas, jogadores que recebem melhor possuem tendência a ter uma saúde mental mais estável. Para ela, é justamente a condição financeira de um atleta de alto patamar no Brasil que faz com que ele consiga arcar com o custo e o tempo do acompanhamento psicológico.

“Não são todos os clubes ou até mesmo confederações que possuem uma equipe multidisciplinar. Às vezes as sessões (de terapia) são restritas aos atletas principais. É para poucos. Sem contar que a psicologia do esporte é algo em fase de popularização e ainda não é uma realidade no nosso país. Naturalmente, quem ganha mais acaba tendo condições de aprender a lidar com suas emoções”, avalia a psicóloga.

Além do salário

Wilkerson Junnior de Souza Gomes, ou simplesmente Junnior Batata, 31, é jogador de futebol natural de Brasília e atesta que a dificuldade com salários é um dos principais obstáculos enfrentados na carreira. Ele explica que, mais do que um sonho, a profissão é uma oportunidade de dar uma vida melhor para a família, mas isso nem sempre é possível. O impasse mora em atrasos salariais ou quantias distantes do valor médio de mercado.

“Não adianta você viver só de um sonho. A própria Bíblia fala ‘todo trabalhador é digno de seu salário’. Então, quando você se dedica, trabalha e chega dia 5 ou dia 10 e o seu salário não cai na conta, isso começa a afetar sua vida pessoal. Por aí vai um mês, dois, acarreta em briga com a esposa, dívidas. Isso a gente nunca espera”, desabafa.

Para complementar a renda do futebol, Batata conta que quando começou, em 2013, atuou como porteiro. Ele tinha que conciliar os gols como atacante com uma rotina de mais 12 horas de trabalho, onde os 1,88 de altura não eram tão bem aproveitados como dentro da grande área. Atualmente, em novembro de 2022, ele mudou o foco: comanda sua própria loja de roupas, a JB Sport, localizada em Valparaíso de Goiás.

E os apertos não param no valor da remuneração. Segundo o atacante, as condições de trabalho também são precárias em alguns clubes. “Já tive que treinar sem colete, de uniforme de cor diferente, sem meião. Isso quando não falta água ou a condução quebra. Uma vez precisei pegar dinheiro da passagem emprestado com um colega para poder chegar (no treino). O futebol é mascarado. Não é tudo aquilo que a gente vê na televisão”.

Só que, para Batata, nenhum valor ou dificuldade se compara à distância que o esporte impõe entre atleta e família. No seu caso, em 2018, quando jogava pelo Jaraguá, time da segunda divisão do Campeonato Goiano, ele precisava viajar cerca de 224 quilômetros após todos os jogos e treinos para visitar Guilherme, seu filho que tratava uma leucemia em Brasília.

Arrependido de não ter aproveitado mais tempo com o pequeno, que faleceu no mesmo ano por conta da doença, Junnior encarou de frente o maior revés de sua carreira ao falar para o Esquina. “Muitas das vezes você se dedica inteiramente ao clube e não recebe aquele mesmo compromisso de volta. Você perde aniversários, Natal, Ano Novo… Se o cara é focado e está distante, ele pode esquecer que não consegue viver isso tudo”.

Não à toa o jogador está sem clube desde agosto de 2022. Ele decidiu dar um tempo do campo para voltar as atenções para planos familiares junto com a esposa Antonia. A mulher, embora goste de ver o marido em campo, prefere que ele esteja ao seu lado na loja de roupas. Ela, inclusive, é uma das maiores incentivadoras da jornada de Batata, sem esquecer da mãe Sirlene, peça fundamental para o início, em 2013.

Junnior formalizou seu relacionamento com Antonia em uma data especial e inesquecível: 13 de março de 2019. Foi quando o motivo de seu apelido, a batata da perna direita, fez a diferença em golaço de bicicleta que sacramentou a vitória do Sergipe sobre o Bahia, em plena Fonte Nova, pela Copa do Nordeste. Aplaudido de pé pela torcida tricolor, o tento marcou a primeira vez que Batata, depois da morte do filho, foi o nome da emoção. Literalmente.

Vitória de virada

Do lado oposto do campo, o goleiro Leonardo Unamuzaga da Silva, 31, é mais um atleta que enfrentou poucas e boas ao longo da carreira. Seu amor pelo futebol é praticamente uma marca de nascença, já que, desde criança, adorava se jogar nas quadras de pedra ou areia para fazer defesas em Uruguaiana, cidade do Rio Grande do Sul onde foi nascido e criado.

Entretanto, o rastro do futebol vai além na história de Léo. O corpo do goleiro é tatuado por duas cicatrizes: uma na mão direita e outra no joelho esquerdo, registros de cirurgias que repararam lesões no segundo e terceiro metacarpos e na patela do jogador, respectivamente. Juntas, tiraram ele dos gramados por quase quatro meses. No meio do esporte, tempo é dinheiro e Unamuzaga sabe bem.

“A gente depende do nosso corpo, ele é o nosso instrumento de trabalho. A partir do momento que tem algo de errado com ele, não tem como você desempenhar sua função no melhor nível e continuar ganhando (dinheiro). Precisamos única e exclusivamente dele para seguir lutando por um espaço”.

Fora o corpo, outra parte de Léo que está marcada pelo mundo da bola é a alma. Segundo o próprio jogador, episódios difíceis no decorrer da carreira ajudaram a formar quem ele é como pessoa. Hoje no Itumbiara, clube da divisão de acesso do Goiano, ele relembra que, nos tempos de categoria de base, permaneceu na concentração sem energia por 15 dias durante o inverno gaúcho.

“O treino acabava no final da tarde e era um centro de treinamento afastado da cidade. Os jogadores que moravam juntos no CT aproveitavam para caçar lenha no meio do mato para conseguir acender uma fogueira de noite e a gente se reunir. Mesmo sendo um período de dificuldade, quando estávamos perto da fogueira procurávamos conversar e nos divertir para tirar a cabeça do que era vivido ali”.

Não foi o único inconveniente que Léo viu ou viveu no trajeto para se consolidar como profissional. Longe disso. Mais do que os chutes potentes dos atacantes adversários, a fome chegou a ser sua algoz durante a época de juvenil. Ele conta que já se alimentou de bananas no lanche da tarde e das cascas delas à noite. Depois de pegá-las na lixeira, triturou-as com água só para ter o que comer na janta.

“Foi um momento marcante na minha carreira. Apesar da pouca idade que eu tinha na época, essas dificuldades me fizeram amadurecer muito. Mas não deixa de ser desumano e inadmissível. Por conta disso tudo, hoje dou valor para qualquer coisa que ganho. O arroz e feijão no meu prato de comida. Até mesmo na relação com as pessoas, porque eram mais de dez pessoas que moravam comigo alojadas”.

Para o futuro, Unamuzaga pensa em mudar o rumo de garotos que, bem como ele anos atrás, vivem o sonho de se tornarem jogadores de futebol. Ele quer defendê-los das injustiças que enfrentou em seu caminho, como manda o seu próprio instinto. Na reta final do seu bacharelado em Educação Física, Léo projeta construir a própria escolinha na sua cidade natal assim que se aposentar.

Ele confidencia ao Esquina que se falasse que possui alguma meta restante na carreira seria mentira, ainda que existam clubes o sondando para a próxima temporada. Suas fichas estão todas apostadas no que ele chama de plano B, mas que na verdade, pelo seu entusiasmo, soa mais como plano A. “Meu grande sonho é que as crianças que vou ensinar tenham a oportunidade que eu não tive”.

Nem sempre o favorito

O plano A de Léo Unamuzaga, porém, não é o mesmo do Governo Federal. Do valor total movimentado pelo futebol brasileiro em 2018 (aproximadamente 50 bilhões de reais), por exemplo, apenas 1% dele foi decorrente de investimento dos responsáveis pelo país. Os clubes, por outro lado, apresentaram 72% da contribuição do futebol com o Produto Interno Bruto (PIB).

Querendo ou não, o panorama restringe a capacidade de sonhos se tornarem realidade, até porque o poder está reservado nas mãos de instituições que definem o que é melhor para elas a longo prazo, e não para os jogadores. Sem contar a politicagem envolvida nos bastidores do esporte. Qual o impacto disso, afinal? A psicóloga Gabriela Rozas explica o peso do que parece uma simples bola na rede.

“Uma frustração na vida de um atleta pode influenciar em tudo. A dificuldade de achar algum time para jogar, por exemplo, pode acarretar no término de uma carreira. Principalmente pensando em patologias como depressão, transtornos de ansiedade e até mesmo suicídio”.

No final das contas, como diz Saramago, é preciso sair da ilha para ver a ilha. E, ao que parece, o futebol, embora seja considerado o esporte favorito do brasileiro, ainda é enxergado de forma superficial não só por quem o acompanha, mas também por quem dita o ritmo do jogo. Diferentemente do destino final em Ensaio Sobre a Cegueira, espera-se que não seja mais necessário abrir mão de parte da dignidade para sobreviver no mundo da bola.

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