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Política & Poder

Na luta pela posse, mesmo 500 anos depois

“Os povos indígenas têm resistido muito ao longo desses 500 anos. Quando lançamos a candidatura, recebemos muitos ataques preconceituosos”

Olavo David Neto

09/12/2020 6h19

Em 15 de novembro, o povo Xukuru finalmente se fez de convidado à “festa da democracia”. A população, que no século XVI já aparecia em relatos historiográficos, conseguiu eleger, pela primeira vez, um dos seus representantes para conduzir a cidade de Pesqueira, no interior pernambucano.

É o cacique Marcos Xukuru (Republicanos), eleito com 51,6% dos votos no município, onde vivem cerca de 10 mil pessoas da etnia. A vitória nas urnas, porém, foi travada pela Justiça eleitoral.

No ano 2000, um santuário posto na terra Xukuru sem autorização virou epicentro de uma batalha campal. Emboscado, Marcos viu dois companheiros mortos, e ateou fogo no alvo da discussão. Hoje, ele é acusado de dano à propriedade privada, e, pego pela Lei da Ficha Limpa, pode nem assumir o cargo.

No DF para recorrer, ele recebeu o Jornal de Brasília.

É simbólico que o primeiro prefeito indígena de Pesqueira tenha essas complicações para ser diplomado e empossado?

Sim. Acredito que nosso município, hoje, é muito emblemático daquelas oligarquias políticas e rurais que sempre ocuparam aquele espaço. Os povos indígenas têm resistido muito ao longo desses 500 anos. Quando lançamos a candidatura, recebemos muitos ataques preconceituosos. “O índio vai virar prefeito?!”. Isso aconteceu muito. [A candidatura] é para quebrar com esse preconceito velado.

Houve aumento na representatividade para povos indígenas nestas eleições. É instigado pelo movimento a entrada de participantes na política tradicional?

É um passo, sim. Estamos fortalecendo para garantir esse protagonismo. O movimento tem combatido, tem ido às ruas, mas fora do sistema. Falta estar lá dentro. Há uma expectativa muito grande, hoje, não só em Pesqueira, mas para os povos indígenas no país. Fui eleito com 51,6% dos votos em Pesqueira, de pessoas que entenderam esse projeto como possível, mas estão tentando cessar esse direito na Justiça.

O senhor falou de governar para todos. Como o senhor pretende lidar com conflitos que envolvam os Xukuru, por exemplo?

No nosso município não tem esses confrontos com relação a terra, coisas assim. Há uma relação boa, nós queremos construir juntos. No nosso plano de governo já há a previsão de um espaço de diálogo para todos.

Ainda assim o senhor comentou das oligarquias. Como governar com elas?

Evidentemente eles podem querer dificultar. Por outro lado, eu sou o prefeito eleito de Pesqueira, eles têm de vir à minha mesa dialogar.

Já houve uma decisão favorável [na comarca eleitoral de Pesqueira] e uma contrária [no TRE pernambucano]. O que o senhor espera do TSE?

Eu espero que a Corte tenha a sensibilidade de analisar o caso específico. Não se trata de uma impugnação de um registro de candidatura por crimes cometidos por políticos, como improbidade administrativa e desvio de recursos. É uma situação totalmente diferente. O acontecimento propriamente dito foi de um atentado que sofri, e desse atentado veio uma reação da comunidade que ali se encontrava.

De vítima, passei a ser réu nesse processo. É preciso que a Corte tenha condições de analisar muito profundamente essa situação para que não cometa nenhuma injustiça. O que esperamos é essa sensibilidade. Na primeira instância, houve ganho de causa e nós concorremos. No TRE, foi uma votação apertadíssima [3×3, com voto de minerva do presidente da Corte]. Aqui, espero que haja condições de análise melhores.

Muito se discute a judicialização da política, sobretudo a cúpula do STF. O mandato do senhor nem começou e já está na Corte eleitoral. Como será um eventual governo?

Nós estamos enfrentando uma grande situação que é o impedimento de implementarmos a nossa equipe de transição no município. O Ministério Público local apresentou várias questões e dá a entender que é o órgão quem quer tocar a transição no município. Não tenho sequer o direito de indicar minha equipe para ficar a par da situação. Há preocupação, sim, dos atores locais judicializarem questões políticas, mas eu estou tranquilo.

Esse atentado traz um embate de 520 anos no Brasil: tradições indígenas x tradições cristãs. Há um paralelo entre isso e outros casos sub judice, de corrupção propriamente dita?

Nosso povo do Nordeste, que tem um contato há mais de 500 anos, desenvolveu um sincretismo religioso Xukuru que envolve a Igreja Católica. O santuário está dentro do território. Temos aldeias com igrejas, nosso povo frequenta, não há problema. O que aconteceu é que as pessoas que tinham interesse no santuário atropelaram o processo. A Funai decidiu que a comunidade deveria ser ouvida, assim como o Congresso Nacional, pois é uma terra federal de uso exclusivo. Com isso, gerou-se um transtorno. É onde entram atores externos incentivando um processo de divisão do povo Xukuru, que deságua nesse atentado e na morte dos dois jovens que estavam comigo.

O senhor é cacique e, agora, prefeito. Há incompatibilidade?

Não. Minha função enquanto cacique não é eletiva, não tem remuneração. A função é escolhida por meio de um processo ritualístico, religioso próprio do povo Xukuru. Eu não perderia a missão da liderança do cacicado. O que acontece hoje é a ampliação das minhas funções para além das fronteiras. Nós temos uma organização consolidada que garante a continuidade do trabalhado. Nossa luta é para que o povo tome o protagonismo das suas lutas. Eu não estarei aqui para sempre. Nosso trabalho é garantir que as gerações futuras toquem esse projeto.

Como foi a gestão da covid no território Xukuru? Caso o senhor assuma, o que a pandemia influenciará na sua gestão da saúde?

Quando essa questão pandêmica chegou ao território, reunimos as lideranças políticas e conseguimos separar uma escola desativada e montamos uma equipe de acolhimento. Foram nove casos, todos de uma vez só. As famílias ficaram em casa e cumpriram isolamento social. As equipes fizeram processos dentro do território. Houve um envolvimento de forma muito sincronizada. Criamos barreiras para evitar entrada de pessoas ao território, higienizamos os carros, doamos máscaras. Dentro do município, precisamos aparelho um pouco mais. O enfrentamento foi relapso nesse aspecto. Apenas mediam as temperaturas, não tinha controle.

O senhor foi eleito pelo Republicanos. Claro que política local é outra história, mas, nacionalmente, a sigla é base do governo federal, que tem postura virulenta contra populações originárias. Qual a sua relação com o partido e o que o senhor acha das alianças a nível nacional do Republicanos?

Estar hoje no Republicanos não foi algo planejado por mim. Minha linha é muito mais de esquerda. No nosso município, os partidos de esquerda, a grande maioria, estavam na mão dos nossos opressores.

Minha candidatura ficava difícil naqueles partidos. No finalzinho do segundo tempo, na consolidação da convenção, garantimos que o PT se somasse à nossa chapa, e até o presidente local pediu demissão. O Psol nós mantivemos contato, mas é muito fechado. Não tinha como montar um campo com partidos que não vêm somar. Queríamos defender Pesqueira. Ficou muito mais localizado. Fomos mesmo sabendo que é um partido de centro, e enfrentamos embates com relação a isso. Dentro do Republicanos, nosso modelo de gestão já quebra as regras do partido, com participação popular, com conselhos.

O senhor não teme, então, acabar virando opositor dentro da própria legenda, ou mesmo ser expulso?

Se for expulso, não tem o que dizer. Procuro outro que me acolha. Tudo bem. Não tenho problema em relação a isso.

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